P A I S A G E M
Passavam pelo ar aves repentinas,O cheiro da terra era fundo e amargo,E ao longe as cavalgadas do mar largoSacudiam na areia as suas crinasEra o céu azul, o campo verde, a terra escura,Era a carne das árvores elástica e dura,Eram as gotas de sangue da resinaE as folhas em que a luz se descombina.Eram os caminhos num ir lento,Eram as mãos profundas do ventoEra o livre e luminoso chamamentoDa asa dos espaços fugitiva.Eram os pinheirais onde o céu poisa,Era o peso e era a cor de cada coisa,A sua quietude, secretamente viva,E a sua exaltação afirmativa.Era a verdade e a força do mar largo,Cuja voz, quando se quebra, sobe,Era o regresso sem fim e a claridadeDas praias onde a direito o vento corre.
Poesia
Sophia de Mello Breyner Andresen
Caminho (2005)
F O L H I N H A
Murchou a flor aberta ao sol do tempo.Assim tinha de ser, neste renovoQuotidiano.Outro ano,Outra flor,Outro perfume.O gumeDo cansaçoVai ceifando,E o braçoDoutro sonhoSemeando.É essa a eternidade:A permanente rendição da vida.Outro ano,Outra flor,Outro perfume,E o lumeDe não sei que ilusão a arder no cumeDe não sei que expressão nunca atingida.
Orfeu Rebelde
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1922)
R I C O C H E T E
Que margens têm os riosPara além das suas margens?Que viagens são navios?Que navios são viagens?Que contrário é uma estrela?Que estrela é este contrárioDe imaginarmos por vê-laTudo à volta imaginário?Que paralelas partidasNos articulam os braçosEm formas interrompidasPara encarnar um espaço?Que rua vai dar ao tempo?Que tempo vai dar à ruaPor onde o FirmamentoE a Terra se unem na lua?Que palavra é o silêncio?Que silêncio é esta vozQue num soluço suspensoChora flores dentro de nós?Que sereia é o poente,Metade não sei de quêA pentear-se com o penteDo olhar finito que o vê?Que medida é o tamanhoDe estar sentado ou de pé?Que contraste torna estranhoUm corpo à alma que é?
O Sol nas noites e o luar nos dias
Natália Correia
Círculo de Leitores (1993)
D U N A S
É o mar do deserto, ondulaçãoSem fim das dunas,Onde dormir, onde estender o corpoSobre outro corpo, o peito vasto,As pernas finas, longas,As nádegas rijas, colinasSucessivas onde o ventoDemora os dedos, e as cabrasPassam, e o pastorSonha oásis perto,E o verde das palmeiras se levantaAté à nossa boca, até à nossa almaCom sede de outras dunas,Onde o corpo do amorSeja por fim um gole de água.
O sal da língua
Eugénio de Andrade
APEL (2001)
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