domingo, 21 de outubro de 2012

Não há bem que sempre dure ...

António Lobo Antunes na Visão de 18.10.2012:

"O meu trabalho está praticamente terminado. Escrevi os livros que queria, da maneira como queria, dizendo o que queria: não altero uma linha ao que fiz e, se me dessem mais cem anos de vida em troca deles, não aceitava. Era exactamente isto que ambicionava fazer. Há uns dez dias acabei o último. Se tiver tempo, e embora a obra esteja redonda (sempre esteve na minha cabeça deixar a obra redonda) é possível, seria possível acrescentar uma espécie de post-scriptum. Não sei se vou fazê-lo. Sai um livro em 2012, para o ano uma colecção destes textozitos, em 2014 o que agora terminei e uma última colecção destas prosinhas e acabou-se (...)"

Como sempre e em todas as circunstâncias, arrepia e, ao mesmo tempo, anseia-se pelo que virá a seguir, agora mais ainda sabendo-se que serão os últimos. Enquanto se aguarda pelo romance agora acabado, um pequeno excerto do recém publicado "Não é meia noite quem quer". 
Em "meia dúzia de linhas", a descrição exaustiva da angústia, da separação, do trabalho, da doença, das relações familiares, da vida. 

"(...) Gostei de ti logo no primeiro minuto só que não sabia o que fazer desde que o meu marido me trocou por, desde que o meu marido se foi embora, eu estava morta, percebes, morta, tudo defunto em mim, quando a requisição no Ministério acabou pensei, sem tristeza nem alegria, porque cá dentro nem tristeza nem alegria, indiferença, lá vou ter que suportar aulas de novo, criaturas à minha frente que não se darão ao trabalho de ouvir o que digo e o que posso dizer que lhes interesse, vão à escola porque têm que ir à escola, não escutam, não aprendem, não sabem falar quanto mais escrever, cochichos, empurrões e eu sozinha diante deles como sozinha em casa, nem os via, palavra, debitava a matéria enquanto assuntos sem relação com o trabalho e sem relação entre si apareciam e desapareciam à medida que a minha boca continuava a mover-se, a factura do gás, por exemplo, de que deixei passar o prazo e agora tenho que ir à companhia e aguentar horas na fila antes que me fechem o contador, um dente lá para trás a aborrecer-me, a minha madrasta, há muitos anos, foste tu que partiste o bambi e foi o braço, sem querer, que o expulsou da cómoda, o bambi da época da minha mãe e eu tão aflita meu Deus, obrigando-a a agonizar outra vez, para além do bambi pouco restava dela, a minha madrasta expulsou o que lhe pertencia, o meu pai calado e eu chorando de zanga, não de pena, no quarto, talvez pelo hábito de a ter ali sem conversar com ela, nunca conversei com ela, isto é a minha mãe não conversava comigo, observava a rua da varanda, tão magra do pâncreas, antes do pâncreas palavra alguma também, a única palavra de que me recordo era come e eu de boca cheia, esquecida de engolir, (...)"

 Uma prosa brilhantemente simples e simplesmente brilhante.

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