sexta-feira, 20 de junho de 2014

Palavras bonitas

Regresso inúmeras vezes a Torga, cuja escrita me fascina e transmite estados, ideias, vertigens, retratos, um sem número de sensações que não consigo explicar.

O Público tem vindo a facultar, semanalmente, reproduções de livros proibidos por quem nos quis (e conseguiu) manter inaptos, incultos, subjugados, atentos, veneradores e servis. Esta semana chegou o Diário VIII, publicado em Janeiro de 1960 e que os algozes decidiram proibir, apesar dos inúmeros protestos quer por cá quer no estrangeiro.

Após a retirada do plástico de protecção e antes de o arrumar junto ao seu companheiro original mas bem mais novo ( tenho a 3ª. edição, de 1976), folheei e reli na diagonal:

TATUAGEM

Um verso apenas, mas que fique impresso
Na morena epiderme
Do teu corpo maciço;
Um verso agradecido
à universal beleza
Do teu rosto redondo,
Infatigavelmente variado;
Um verso branco e puro
De rendido louvor
À serena ironia
Com que deixas brincar no teu regaço
A inquietação,
E devolves o eco
De cada grito
À boca enfurecida,
- Terra, pátria da vida!
Eva que o sol fecunda do infinito!

S. Martinho de Anta, 29 de Outubro de 1955 - O solar da família, térreo, de telha vã, encimado pelo seu brasão de armas esquartelado, com enxadões em todos os campos ... Foi desta realidade que parti, e é a esta realidade que regresso sempre, por mais voltas que dê nos caminhos da vida. É uma certeza de marco com testemunhas, que nunca me deixa desorientado quando quero avivar as estrelas da alma. Basta escavar um pouco a crosta da aparência, e aí estou eu na matriz, confrontado.
Há tempos, em Lovios, no Gerês espanhol, depois de conversar com vários habitantes da povoação, interessei-me por um tumor a despontar no pescoço de uma velhota.
- É doutor ... - informou o meu companheiro.
- Que doutor! Ele é como nós! ...
E sou. Tudo, menos trânsfuga da minha classe. Nasci povo, povo continuo, e povo quero morrer. (...)

Diário VIII
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra

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