A minha filha foi esta semana falar à escola dos meus netos sobre discriminação e teve uma grande receptividade da parte das crianças que a ouviram e que com ela partilharam os sentimentos e as experiências que, sobre o tema, já tinham tido ou sentido. Por mera coincidência, hoje li mais uma história dos habitantes do prédio que Lobo Antunes descreve no seu novo livro, esta a dos que moram no rés do chão direito.
(...)
que curioso o tempo, volta e meia marcha ao contrário recuperando cenas perdidas, tardes na praia, uma girafa do carrossel que se escapou da feira, a prega de apreensão do meu pai enquanto afasta o jornal
- O que vai ser de nós?
as lojas dos judeus despejados, os colegas da escola sem falarem connosco, meninas que puxavam o cabelo à minha irmã, um rapaz que me bateu, o director
- Não os tragam mais são judeus
e a pena na cara dele, não o frenesim dos restantes, um aluno mais adiantado ameaçou-o com a régua
- É amigo dos judeus?
e o director sem o castigar, baralhando as mãos, mais alunos em torno
a primeira bofetada, a primeira rasteira, o primeiro soco nas costas, uma súplica aflita
- Perdão
o casaco rasgado, o vizinho que nos visitava às vezes
- Não me falem
a vidraça da varanda quebrada, as floreiras do muro no chão, os pneus do nosso automóvel furados e o mecânico baixinho
- Não me deixam vender-lhes
e alto a seguir para um freguês que entrava
- Não vendo a judeus
(...)
Caminho como uma casa em chamas
António Lobo Antunes
D. Quixote (2014)
1 comentário:
Os horrores de que fomos (e somos) capazes... Espécie idiota esta...
Enviar um comentário