sábado, 14 de novembro de 2015

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) Desde menina me incumbiram de uma missão que deveria caber a um rapaz: subir às figueiras para capturar morcegos e lhes arrancar as asas, sem que fosse mordida pelos seus pestilentos dentes. As membranas das asas, depois de secas, forravam as caixas de ressonância. Esse era o segredo mais valioso da receita paterna para o fabrico de marimbas. (...)

No ramos mais altos reuniam-se as fêmeas que amamentavam os filhotes. De tal modo se pareciam com pequenas pessoas que eu evitava enfrentá-las nos olhos para não fraquejar no meu intuito caçador. Aquele sentimento de compaixão foi-se avolumando à medida que em mim cresciam sonhos de maternidade. Até que, daquela vez, frente ao tronco que devia escalar, ganhei coragem para declarar:

- Desculpe, pai. Mas eu não volto lá em cima nunca mais.

O meu velhote admirou-se com a minha atitude. (...)

E ele, surpreendentemente, aceitou a minha recusa.

- Está com pena dos morcegos? Eu entendo, minha filha. E vou-lhe dizer por que percebo muito bem essa sua recusa.

E contou-me uma história antiga, que escutara dos seus avós. Naquele tempo, os morcegos cruzavam os céus com a vaidade de se acreditarem criaturas sem semelhança neste mundo. Certa vez, um morcego tombou ferido numa encruzilhada de caminhos. Passaram por ali os pássaros e disseram: olha, um dos nossos! Vamos ajudá-lo! E levaram-no para o reino dos pássaros. O rei das aves, porém, ao ver o morcego moribundo comentou: ele tem pelos e dentes, não é dos nossos, levem-no daqui para fora. E o pobre morcego foi depositado no lugar onde havia tombado. Passaram os ratos e disseram: olha, é um dos nossos, vamos salvá-lo! E conduziram-no à presença do rei dos ratos que proclamou: tem asas, não é dos nossos. Levem-no de volta! E conduziram o agonizante morcego para o fatídico entroncamento. E ali morreu, só e desamparado, aquele que quis pertencer a mais do que um mundo.

Era evidente a moralidade da fábula. Por isso estranhei a sua pergunta, no final:

- Entendeu, filha?
- Acho que sim.
- Duvido. Porque esta história não é sobre morcegos. É sobre você, Imani. Você e os mundos que se misturam dentro de si.

Mulheres de cinza
Mia Couto
Caminho (2015)

Sem comentários: