Um romance que discorre sobre a história da escravatura do século XIX ou uma alegoria dos tempos actuais?
Ainda não cheguei ao fim, mas estou a inclinar-me para a segunda hipótese ...
"(...) Criaturas mudas, já desistentes da vida, que olhavam o céu como se pedissem asas ou socorro a uma qualquer entidade altaneira. Seminus, lançavam-se ao comprido no chão, alguns a esconder o rosto daquelas multidões bizarras, brancas como os ossos dos urubus descarnados pelas formigas, com umas bocarras cheias de cuspo de onde saíam sons incompreensíveis e de arestas estridentes,
entontecidos, assustadiços, ora com os altos brados dos capatazes, ora com os risos trocistas,
se o velho arqueja, se no chão resvala,
ora com os horizontes apertados, onde as casas também tinham arestas e buracos como olhos
(eram janelas)
e pálpebras
(as cortinas)
monstruosos, que também os miravam do alto das colinas. Ninguém se entendia, as algaraviadas de vários tribos, tudo ao monte. O consenso geral é que estavam a ser escolhidos para banquete dos brancos. Por isso, iam os gordos primeiro. O casal por conta própria remexia na mercadoria, apalpava como que a separar a fruta bichada, reparava em sinais da tão virulenta varíola atrás das orelhas, procurava bubões debaixo dos braços, vestígios de escorbuto nas gengivas, (...) quando chegava a hora de apartá-los, desmantelar famílias, filhos para um lado e pais para outro, as mães acocoradas em cima das crias, entregando a carne das costas ao chicote para não as deixar levar, já a dupla de engordadores estava bem ciente do que pretendia. (...)"
Não se pode morar nos olhos de um gato
Ana Margarida de Carvalho
Teorema (2016)
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