quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Observemos um caso concreto bem documentado e que já atrás aflorámos. Em 1742, o nosso rei D. João V teve um AVC, então descrito como um <<um estupor que o privou dos sentidos e ficou teso de toda a parte esquerda, com a boca à banda>>. Enquanto o rei repousava no real leito rodeado de pagelas, de mitras, de rezas e de estatuetas de santinhos, o que faziam os seus médicos? Sangraram-no, claro, e deram-lhe, à laia de primeiros socorros, uma infusão purgante de açafrão, <<xarope áureo>> (provavelmente uma mixórdia feita à base de açúcar de cana) e <<pós cornichos>> (desconhecemos o que seja). Depois, reuniu-se uma junta médica para fazer o diagnóstico, na qual se incluíam todos os físicos e os cirurgiões do paço.

Uns diziam que a causa de tal achaque (os termos <<trombose>> ou <<AVC>> nunca são referidos) se devia ao costume que o monarca tinha de dar despacho depois de comer; outros defendiam que tal sucedera porque o rei era guloso; outros garantiam que tal fora causado pelo facto de o monarca beber água do Chafariz d'El-Rei (que era o principal chafariz de Lisboa, lembre-se); uns tantos acusaram os cirurgiões reais de serem os culpados do ataque, por cobrirem as úlceras das pernas de el-rei com unguentos à base de ouro. Por fim, a opinião dominante foi a que afirmou que o ataque fora provocado por um tratamento à base de essência de Ambarum griseum (essência de âmbar), mistela que era dada ao monarca como afrodisíaco e espevitante sexual ... 

A decisão final da junta médica foi parar a aplicação desses remédios todos e enviar o rei a banhos termais para o Hospital das Caldas da Rainha. (...)"

Sérgio Luís de Carvalho
Das tripas coração
(Saúde, Higiene e Medicina no tempo dos descobrimentos)
Minotauro (2023)

1 comentário:

Anónimo disse...

Sempre bom o regresso às Caldas para sarar as maleitas reais.