sábado, 13 de janeiro de 2024

Palavras bonitas

Discurso

Vinde cá todos! Enchei a praça.
Eu, que não gosto de discursos,
tenho um discurso a fazer.
Chegai-vos e ouvi. Ou não ouvi, se quereis.
Mas cinde, que eu preciso fazer um discurso,
e para haver discursos é preciso público.
Isso, todos aí. Curiosos,
desdenhosos, 
ociosos,
e até ranhosos, pouco importa. Mas todos.
Sentados ou deitados,
verticais ou oblíquos, 
paralelos, concorrentes,
secantes, tangentes,
- irra! - tudo o que quiserem. Mas todos.
Público, que eu preciso de pedir a palavra.
Tenho uma mensagem a dizer.
Eu, que não sou profeta,
nem revolucionário,
nem aviso funerário,
eu que sou o contrário
de tudo isso, precisamente porque não sou nada disso,
tenho algo a dizer. (E logo às massas
que é uma irrealidade que me bole com os nervos
desde as unhas dos pés ao centro do miolo!)
Aí vai (já não é sem tempo): Sou uma besta quadrada
e forrada do mesmo, para maior perfeição.
Ando sempre a quatro. Lucidamente a quatro, 
quando sei que nem ao pé coxinho devia ir.
Tenho a estupidez mais estúpida que há:
medida, exacta, vista,
esquadrinhada,
a estupidez inteligente, sabem?
Não dou berros quando todas as pessoas
normalmente os dão.
Calo-me quando devia dizer palavrões.
Sorrio quando devia morder.
Perdoo quando o momento pedia
um sacrosanto par de bofetadas.
Arre! Cheiro a museu,
cheiro a arquivo,
cheiro a jantar de cerimónia.
É demais!

E porque é demais para uma pessoa só
é que fiz este discurso
- eu, que odeio discursos, museus e arquivos
e os jantares de cerimónia.

Tenho dito!

Ermelinda Xavier
Barro e Luz (Poesia completa)
Unicepe (2016)

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