sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

Fui (re)ler. A memória já só retinha o tema e a forma que o autor, e protagonista principal, tinha encontrado para narrar o seu sofrimento às mãos dos fascistas alemães, apenas e só por ser judeu. Custa-me a acreditar que, se fosse vivo, Primo Levi concordasse com o que alguns compatriotas seus têm levado a cabo em Gaza, com a justificação de estarem a vingar o atentado terrorista de 7 de Outubro de 2023. Pelo contrário, acho que ele deveria ser um acérrimo defensor do diálogo e da paz.

"(...)  Ka-be é a abreviatura de Krankendau, a enfermaria. São oito barracas, em tudo parecidas com as outras do campo, mas separadas por um arame farpado. Contêm permanentemente um décimo da população do campo, mas poucos permanecem mais de duas semanas e ninguém mais de dois meses: dentro destes prazos temos obrigação de morrer ou ficar curados. Quem tem hipótese de se curar, no Ka-Be é tratado; quem tem tendência para piorar, do Ka-Be é enviado para as câmaras de gás.

Tudo isto porque temos a sorte de pertencer à classe dos "judeus economicamente úteis".

Nunca entrara no Ka-Be, nem no Consultório, e portanto tudo aqui é novo para mim.

Os consultórios são dois, o Médico e o Cirúrgico. Diante da porta, na noite e no vento, estão duas longas filas de sombras. Uns precisam só de uma ligadura ou de um comprimido, outros pedem para marcar consulta; alguns trazem a morte na cara. Os primeiros das duas filas já estão descalços e prontos para entrar; os outros, à medida que a sua vez se aproxima, procuram, no meio da confusão, desligar os laços improvisados e os arames dos sapatos e desenrolar, sem os rasgar, os preciosos panos para os pés; não demasiado cedo, para não ficarem inutilmente na lama com os pés descalços; não demasiado tarde, para não perderem a vez: pois é rigorosamente proibido entrar no Ka-Be com os sapatos. Quem está incumbido de fazer respeitar a proibição é um gigantesco Häfling francês, que estaciona no cubículo colocado entre as portas dos dois consultórios. É um dos poucos funcionários franceses do campo: e não se pense que passar o dia entre os sapatos lamacentos e rotos constitua um pequeno privilégio. Será suficiente pensar em quantos entram para o Ka-Be com os sapatos e saem sem precisar deles ...

Quando chega a minha vez, consigo milagrosamente tirar os sapatos e os panos sem perder uns nem outros, sem que me roubem a marmita e as luvas e sem perder o equilíbrio, embora sem largar o boné, que por nenhuma razão se pode ter na cabeça ao entrar nas barracas.

Deixo os sapatos no depósito e guardo a respectiva senha, depois, descalço e coxeando, com as mãos ocupadas com todas as minhas míseras coisas, que não posso deixar em lado nenhum, sou admitido no interior e fico numa nova bicha que termina na sala das consultas. 

Nesta bicha despimo-nos progressivamente e, quando a nossa vez se aproxima, é preciso estarmos nus porque um enfermeiro nos coloca o termómetro debaixo da axila; se alguém estiver vestido, perde a vez e volta para o fim da bicha. Todos devem pôr o termómetro, mesmo que tenham só sarna ou dor de dentes.

Deste modo há a certeza de que quem não está seriamente doente não se irá submeter por capricho a este complicado ritual. (...)"

Se isto é um homem
Primo Levi
Público - Colecção Mil Folhas (2002)

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