segunda-feira, 27 de maio de 2013

Livros (lidos ou em vias disso)

Passam hoje 50 anos da morte de Mestre Aquilino Ribeiro, o escritor que ainda agora me obriga a ler, reler e a ter o dicionário por perto, para aprender mais uma, duas, três, muitas palavras novas que sempre surgem, demonstrando que a língua portuguesa é muito mais rica do que aparenta, pelo cada vez mais reduzido vocabulário que vamos usando.

Aquilino foi grande na "Casa Grande de Romarigães", nas "Terras do Demo", no "Malhadinhas", em "Quando os lobos uivam" ou no "Um escritor confessa-se", e em tantos outros, nas mais de seis dezenas de livros que publicou.

O excerto abaixo é da "Geografia Sentimental", livro escrito em 1951 e reeditado pela Bertrand em 2008, que retrata o Portugal profundo e as suas formas de viver, sofrer e trabalhar.

"(...) salvo que o menino, o Quinzinho, viera ao mundo muito enfezado, muito raquítico, velhinho de todo. Ninguém dava nada por ele. Em pequeno era um rolho de bichas, que a mãe ajoujava com um rosário de dentes de alho e escapulários ao pescoço. Depois com a infância, sempre amarelo, sempre a tremer as maleitas, umas enfermidades a seguir às outras, escarlatina, sarampo, dizem que as bexigas negras, que não deitam para fora, e deixam o picado por dentro, só estava bem detrás dos potes da vianda. O homem desesperava-se:
- De que vale tanta labuta, mulher? O nosso menino nunca há-de ser gente!
- Quem sabe lá! Olha, homem, pode ser que Deus Nosso Senhor se amerceie da gente. Chamemo-nos a Santo Antão, se até às sortes o nosso Quim enrijar e estiver em condições de deitar as correias às costas, prometemos-lhe ... prometemos-lhe o quê?
- Dize lá tu?
- Prometemos-lhe a cera que se possa comprar com o dinheiro duma vaca, a melhor vaca, que a essa altura, a gente tenha na loja. Combinado?
- Caramba, o Santo Antão tem para se alumiar à tripa-forra uns dois ou três anos! Será muito prometer, mulher! - foi proferindo ele.
(...) Aos dezanove anos o Quim lidava rijo e fero. Tanto era capaz de rachar um carro de cavacos em meia manhã como dar uma beirada nas malhas, de rópia com as mais valentes mangueiras. À porta da igreja apareceu colado finalmente o rol dos mancebos em idade militar que haviam de ir à inspecção, e o pai veio ter com a mulher coçando a nuca:
- Agora, arrota!
- Arrota o quê?
- A promessa a Santo Antão!
(...) Ataviaram-se com andainas de ver a Deus para ir à feira e, que remédio, tiveram de advertir o moço da obrigação inelutável. Quando tal soube o Quim deu por paus e pedras, não se cansando de censurar à mãe que se tivesse abalançado a tão desorbitado voto, sendo certo que uma avé-maria, dita com unção, vale aos olhos de Deus tanto como a embaixada que D. Manuel mandou ao Papa. (...) - Traga também um galo! - disse o Quim no momento de despegar para a feira com a vaquinha presa já por uma corda, em cruz de ponta para ponta.
(...) - Para que quer dois galos? Para as pitas que tem, chega-lhe um. Ou pagam-lhe para galar as galinhas cá da terra? (...)
- Quanto a germela?
- Uma libra ... (...) 
- Palavra de rei: custa uma libra! (...)
- Está castigado! A vaca é minha.
- Mas alto ...! - exclamou o Quim. - Ainda não disse a palavra derradeira ...
(...) - Quem levar a vaca tem de levar o galo. Senhora mãe mostre cá o frangão ...
(...) - Se é isso, também levo o galo. Quanto?
- Vinte libras. (...)

Geografia sentimental
Aquilino Ribeiro
Bertrand (2008)

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