sábado, 6 de outubro de 2018

Livros (lidos ou em vias disso)

Ler, dizia-se hoje em Óbidos, é uma actividade que exige um trabalho enorme do nosso cérebro. Esse trabalho é, na maioria das vezes, completamente inglório, por não se conseguir opinião igual nos leitores e, muito menos, que ela seja coincidente com a do respectivo autor. E, lugar comum, o mesmo livro provoca reacção diferente na mesma pessoa se lido (relido) em tempos diferentes.
Deixem-se as coisas sérias e as opiniões mais ou menos filosóficas e veja-se como é possível escrever verdades tão duras com um humor genial.

LUTA DE CLASSES VOCABULAR

"Certas palavras têm mais prestígio do que outras. A palavra desfalque olha de cima para a palavra roubo - e, por isso, o elegante autor de um desfalque distingue-se de um vulgar ladrão. As sentenças judiciais costumam ser bem mais pesadas para o segundo, por pouco que ele roube, do que para o primeiro, por mais que ele desfalque. Ora, a minha vida decorre inteiramente num universo lexical desprovido de prestígio. Tirando fugazes momentos em que, no entender de certos operadores de telemarketing, eu sou um cavalheiro, na esmagadora maioria do tempo eu sou um gajo. Todas as palavras usadas para me descrever a mim e ao meu mundo são triviais. Por exemplo, na última ceia, Nosso Senhor Jesus Cristo bebeu por um Graal. Nunca me aconteceu. Os meus amigos e eu, quando jantamos, bebemos sempre por copos. Nunca vamos tomar uns grais. São sempre vulgares - e, por vezes, plásticos - copos. Muito provavelmente, também não terei um solene leito de morte. Como é óbvio, durmo numa cama. Devo morrer lá. Outro exemplo: nos livros, as personagens retiram-se com muita frequência para os seus aposentos. Eu vou para o meu quarto. Quando os meus pais (quando eu era pequeno), ou a minha mulher (agora) me põem de castigo, é para o quarto que me mandam.
Sucede que as palavras determinam a qualidade das coisas. Às vezes vou a um desses novos restaurantes em que os pratos levam dez linhas a descrever. No meu tempo não era assim. Os pratos eram designados por uma palavra só. Feijoada. Chanfana. Cozido. Hoje sinto que me falta formação académica para almoçar lascas de bacalhau em azeite a baixa temperatura sobre cama de puré de grão de bico e espinafres baby com redução de balsâmico, alho e ervas finas. E, quando a comida chega à mesa, descubro sempre que desfrutei mais da descrição do que sua ingestão. As palavras são mais ricas do que a comida, mais suculentas do que a comida, mais saborosas do que a comida. E, neste tipo de restaurante, normalmente as palavras são mais do que a comida. O discurso sobre a comida é melhor do que a comida, faz a comida melhor do que ela é. Na minha vida isso é impossível. Palavras cruelmente banais descrevem a minha evidente banalidade. Não hei-de falecer no meu leito de morte após uma noite de graais. Vou morrer na cama depois de ter estado nos copos. E já será uma sorte."

Estar vivo aleija
Ricardo Araújo Pereira

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