terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Livre como um passarinho

O rabirruivo chilreia, saltitando de arbusto em arbusto sem se preocupar com o que se passa à sua volta. Está em domínio alheio mas não liga a isso. Sabe que, por aqui, não há caçadores e, mesmo que os houvesse, nenhum desperdiçaria um chumbo que fosse com um passarito tão minúsculo. Algum perigo que possa aparecer em cima de quatro patas, detecta-o com facilidade e um pequeno bater de asas coloca-o a salvo.

Faz-se notado se lhe apetece, esconde-se quando lhe apraz, bem lá metido por entre as folhas, onde nem olhos habituados o detectam. Parece procurar quarto, que a época do acasalamento está a chegar e a noiva deve ser exigente. Sabe que não terá de fazer contrato ou pagar renda, e que o senhorio lhe facultará a instalação de forma condigna e com o maior gosto, protegendo-o, até, se necessário for.

Faz parte da casa, apesar de não ter sido contado no Censos. Não reivindica outra coisa que não seja a liberdade de por aqui andar, sem dar satisfação a ninguém e da forma como lhe dá na real gana. Canta, saltita, esvoaça, sobe ao telhado, desce à relva, mostra-se ou esconde-se, vive bem e de acordo com as suas regras. Tem prazer nisso, nota-se à légua.

Partirá se e quando lhe apetecer, gozando a liberdade que é sua e há-de manter até ao fim. Não há preço que a pague!

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Delírios

A maioria absoluta do Partido Socialista completa hoje o seu primeiro aniversário, sem grandes festas, que o tempo não está para apagar velas, cortar o bolinho ou cantar os parabéns. A "bebé" teve um primeiro ano de vida muito atribulado, contrariando as expectativas criadas aquando do seu nascimento. Faltas de ar sistemáticas, constipações frequentes, algumas delas com grandes probabilidades de se tornarem pneumonias graves, outras que deixaram sequelas não muito habituais, como o esquecimento e a gaguez.

O mundo político parece estar a mudar, a julgar pelas exibições que os dois partidos mais recentes tiveram nos espectáculos recentes que organizaram. Da entronização do líder supremo aos gritos com voz entaramelada pela ânsia de falar sem nada dizer, houve de tudo.

- É disto que o meu povo gosta!?

Os altares, a corrupção nos concursos, os ordenados e os prémios, os arguidos e os secretários que antes de o ser já eram, a falta de clareza e de verdade, não ajudam nada. A contestação social é resultado de injustiças antigas e estimulada pelas notícias, pondo a nu que há filhos e enteados, sendo que, para ser filho, na maior parte das vezes basta exibir o cartão.

Quero acreditar que a grande maioria dos que se disponibilizam para servir a causa pública são gente séria. Afigura-se-me ser imprescindível que esses se demarquem claramente das ovelhas ronhosas e digam que a sociedade mais justa é possível, que a justiça será implacável e rápida para com os aproveitadores sem escrúpulos nem vergonha. "A democracia é o pior dos regimes, com excepção de todos os outros."

Dos outros, já tive a minha conta!

domingo, 29 de janeiro de 2023

Remédios

A temperatura do ar confirmava as previsões do IPMA e não estaria para lá dos cinco graus quando a caminhada se iniciou. O mar tranquilo, o céu azul, o vento ausente, o sol a cumprir as suas obrigações, a conversa a fluir, as mãos nos bolsos (o que é raro, para quem fala sempre com elas), e, num ápice, o frio deixou de estar presente. A meio, já apetecia tirar o casaco, ainda que o andar fosse tranquilo, sem excessos ou correrias. 

- O médico disse-me que, na nossa idade, o importante é andar, não é correr. Olha o C.: corridinhas, corridinhas e agora está com um problema nos joelhos que nem andar consegue. 

O fecho estava entalado na ourela do casaco e nem para baixo nem para cima.

- É o costume. Nunca tens cuidado. Agora aguenta ...

O que não tem remédio, remediado está. Mais casaco, menos casaco, o passeio matinal prosseguiu e foi concluído sem suadelas escusadas e com muita conversa, de ontem, de hoje e até do amanhã.

- Vai ser muito complicado, não achas?

Voltando ao casaco, se fosse a menos, talvez houvesse complicação ou necessidade de alargar mais o passo. Muitos também não os têm e andam todos os dias, por obrigação e não por desporto e prazer.

A manhã aproxima-se do fim e o almoço do início. Há muita gente caminhando junto à Lagoa, bicicletas, atletas correndo. Surgem dificuldades no trânsito. A via pedonal torna-se estreita, uns encolhem-se, outros passam para a estrada, sem qualquer perigo que os carros são poucos e vêm devagar, alguns fazem "sala" para pôr a conversa em dia. Tudo se compõe. É bom caminhar na Foz em qualquer altura e, em manhãs destas, fantástico.

- Agora é chegada a altura de meditar nos objectivos da próxima semana, de modo a não comprometer os resultados fixados e o prémio prometido. Qualquer falhanço põe o "cacau" a voar ... 

Estás a delirar ... Isso era dantes. Agora, és técnico superior de lazer, sem objectivos que valham prémios pequeninos e muito menos chorudos.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Palavras bonitas

O PAÍS SEM MAL

Um etnólogo diz ter encontrado
Entre selvas e rios depois de uma longa busca
Uma tribo de índios errantes
Exaustos exauridos semimortos
Pois tinham partido desde há longos anos
Percorrendo florestas desertos e campinas
Subindo e descendo montanhas e colinas
Atravessando rios
Em busca do país sem mal -
Como os revolucionários do meu tempo
Nada tinham encontrado

Ilhas
Sophia de Mello Breyner Andresen
Caminho (2004)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Partidas

Se há dias em que não apetece escrever nada, hoje é um deles. 

O blogue perdeu um leitor e eu, um amigo, ex-colega de um trato impecável, uma lealdade irrepreensível e um carácter extraordinário. Para além disto, que não é nada pouco e é cada vez mais raro, ainda era um excelente cozinheiro e disso deu provas em algumas comezainas que por aqui realizou, evidenciando grande capacidade e gosto.

Acabou o sofrimento para o E.R., que hoje deixou a Encarnação e partiu para o espaço do céu que, de acordo com a sua fé, lhe estava reservado. Dele vou sempre recordar o trabalho que comigo partilhou com grande proximidade, o seu incrível sentido de humor e a cumplicidade amiga com que sempre me distinguiu. 

Adeus, E.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Polémicas

A pandemia criou o hábito de postar diariamente qualquer coisa no blogue. Um simples texto, uma fotografia, alguma música, a poesia e a prosa de consagrados ou de menos conhecidos, uma simples opinião, uma estória, um facto, uma diversão.

O hábito não faz o monge mas ajuda a criar vícios e aquilo que, tudo o indicava, seria uma diversão passageira para iludir o tempo de "clausura", passou a quase obrigação quotidiana. Não devia acontecer, ainda por cima a alguém que já deixou, há quase meia dúzia de anos, os deveres que a vida lhe impingiu ou ofereceu. 

É mau! Ou melhor, é péssimo! Não pela falta de assunto - há sempre - (dos arroz de tordos de ontem à chuva que está a cair neste momento), mas porque escrever o que quer que seja é uma manifestação de ideias, opiniões, sensações, inclinações, que ficam registadas e por aqui permanecerão para sempre, vinculando o seu autor e pondo a nu as suas (in)capacidades. Tudo isto agravado por a opinião de hoje poder ser totalmente oposta à que foi emitida ontem ou há dez anos. Só não mudam de opinião os burros...

E corre-se o risco de aquilo que hoje é uma verdade insofismável, amanhã passar a uma mentira clarinha e sem fundamento. São consequências inevitáveis da sociedade vertiginosa em que nos tornámos, da vivência carregada de opinadores sem escrúpulos nem competência, de toda a gente, eu incluído, se sentir capaz de analisar, comentar e difundir tudo e mais um par de botas.

Nos últimos tempos, os esquecimentos, os desconhecimentos, os "sabia mas não pensei", "conhecia mas não me pareceu relevante", têm sido muitos e, alguns deles, de pôr os cabelos em pé.

Está em marcha mais uma polémica: o custo do altar que irá ser utilizado pelo Papa, nas Jornadas Mundiais da Juventude, que irão ter lugar na zona do Rio Trancão, em 2023. Há quem saiba, há quem diga que disse e quem negue ter ouvido, há quem considere exagerado e quem entenda o contrário, há quem afirme que o Papa Francisco vai ficar atrapalhado quando acessar àquele luxo, há quem contraponha que a ocasião, única, justifica tudo. Para calar todas as vozes, o Presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, apareceu a defender, peremptoriamente, que não se trata de despesa mas sim de um investimento. Altamente rentável, afirmou. No presente, pela imagem que catapulta por todo o mundo; no futuro, pela utilização imensa que lhe vai ser dada.

A ver vamos ...

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Tudo o que havia em casa tinha sido comprado antes da guerra. As panelas e os tachos estavam escurecidos, sem asas, os púcaros sem esmalte, os cântaros furados, remendados com uns bocados que se fixavam no buraco. Os casacos eram arranjados, os colarinhos das camisas virados, os fatos de domingo passavam a ser de todos-os-dias. Não pararmos de crescer era o desespero das mães, obrigadas a acrescentar os vestidos com uma tira de tecido, a comprar os sapatos um número acima, e já apertados no ano seguinte. Tudo devia ter uso, o estojo dos lápis, a caixa de pintura Lefranc e a caixa das bolachas de manteiga LU. Não se deitava nada fora. Os baldes da noite serviam de estrume no jardim, o esterco apanhado na rua depois de passar um cavalo servia de adubo para os vasos das flores, o jornal servia para embrulhar legumes, secar por dentro os sapatos molhados, limpar o rabo na casa de banho.

Vivíamos com falta de tudo. Objetos, imagens, distrações, explicações acerca de nós e do mundo limitadas ao catecismo e aos sermões da Quaresma do padre Riquet, às últimas notícias de amanhã anunciadas na rádio pela voz poderosa de Geneviève Tabouis, às histórias das mulheres que contavam as suas vidas e as da vizinhança durante a tarde à volta de uma caneca de café. As crianças acreditavam durante mais tempo no Pai Natal, que os bebés vinham no bico da cegonha ou que os meninos nascem das couves e as meninas das flores.

As pessoas deslocavam-se a pé ou de bicicleta, numa cadência regular, os homens com os joelhos afastados, as pernas das calças presas em baixo com molas, as mulheres com as nádegas apertadas na saia justa, desenhando movimentos fluidos na tranquilidade das ruas. O cenário era de silêncio e a bicicleta marcava a velocidade da vida.

Vivíamos quase na merda. E ríamos. (...)"

Os anos
Annie Ernaux
Livros do Brasil (2020)

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Quantos?

Os números dizem pouco e interessam menos. Fica a música, para quem dela gosta e hoje inicia mais um ano na caminhada.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

Divagações

Desde sempre que encaro cada dia como um novo começo, o início de um ciclo, uma nova batalha, mais um desafio. O passado tem influência, dá lastro e experiência, permite corrigir e evitar, recordar, destapar, ponderar.

Mas é o futuro, sempre o futuro, que interessa. É nele que nos projectamos, nos debruçamos, nos despimos e nos mostramos capazes, com a preocupação de tornar cada dia melhor do que o anterior. Não vai ser sempre possível. Não há estradas sem curvas, mares sem ondas, céus sem nuvens. Há um caminho a ser percorrido, com dedicação e profissionalismo, honestidade e preocupação, não isento de erros e apenas com a certeza de que, todos os dias, nos tentamos superar.

Surgirão - surgem sempre - aqueles dotados que tudo fariam muito melhor e que detêm a receita milagrosa para a pior doença. A maior parte são frustrados tocadores de ouvido, para quem o compasso da vida apenas desenha arcos e nunca circunferências.

Inicia-se hoje um novo ciclo, lá bem no centro da Europa, com muito frio e os tiros bem perto. Vai trazer a ansiedade distante bem perto, preocupação, receio e também, esperamos todos, muitas alegrias.

Continuarei, sempre, um "tuga" empedernido, mas vou "estar" polaco durante uns tempos.

domingo, 22 de janeiro de 2023

À procura da manhã clara

A perspectiva tem destas coisas, iludindo ou criando situações que parecem o que não são e são o que não parecem. 

Um olhar apressado pode indiciar que as Berlengas vieram até à "aberta" e querem entrar na Lagoa. Não é verdade! A manhã estava de sonho, sem vento, um sol radioso, a água, um espelho, mas as Ilhas continuavam no seu lugar, lá ao longe, dando apenas a ideia de que pretendiam, também, usufruir da beleza.