quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Tudo o que havia em casa tinha sido comprado antes da guerra. As panelas e os tachos estavam escurecidos, sem asas, os púcaros sem esmalte, os cântaros furados, remendados com uns bocados que se fixavam no buraco. Os casacos eram arranjados, os colarinhos das camisas virados, os fatos de domingo passavam a ser de todos-os-dias. Não pararmos de crescer era o desespero das mães, obrigadas a acrescentar os vestidos com uma tira de tecido, a comprar os sapatos um número acima, e já apertados no ano seguinte. Tudo devia ter uso, o estojo dos lápis, a caixa de pintura Lefranc e a caixa das bolachas de manteiga LU. Não se deitava nada fora. Os baldes da noite serviam de estrume no jardim, o esterco apanhado na rua depois de passar um cavalo servia de adubo para os vasos das flores, o jornal servia para embrulhar legumes, secar por dentro os sapatos molhados, limpar o rabo na casa de banho.

Vivíamos com falta de tudo. Objetos, imagens, distrações, explicações acerca de nós e do mundo limitadas ao catecismo e aos sermões da Quaresma do padre Riquet, às últimas notícias de amanhã anunciadas na rádio pela voz poderosa de Geneviève Tabouis, às histórias das mulheres que contavam as suas vidas e as da vizinhança durante a tarde à volta de uma caneca de café. As crianças acreditavam durante mais tempo no Pai Natal, que os bebés vinham no bico da cegonha ou que os meninos nascem das couves e as meninas das flores.

As pessoas deslocavam-se a pé ou de bicicleta, numa cadência regular, os homens com os joelhos afastados, as pernas das calças presas em baixo com molas, as mulheres com as nádegas apertadas na saia justa, desenhando movimentos fluidos na tranquilidade das ruas. O cenário era de silêncio e a bicicleta marcava a velocidade da vida.

Vivíamos quase na merda. E ríamos. (...)"

Os anos
Annie Ernaux
Livros do Brasil (2020)

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