sábado, 6 de abril de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

Já levo muitos milhares de páginas lidas e continuo sempre a surpreender-me. Este livro, oferecido pela minha filha no Dia do Pai, confirmou, se necessário fosse, que estamos sempre muito longe de saber e conhecer tudo. Não conhecia o autor e, da história narrada, talvez tivesse ouvido algumas coisas, sempre pela rama. Não foi uma delícia porque os factos são arrasadores, marcantes, terríveis. Mas é um livro fantástico!

"(...) Lembro-me de que o Benitez sempre se despedia de mim da mesma maneira: <<Jovem, que seja muito feliz>>, e fazia uma reverência teatral. Essa saudação, quando saía à rua, provocava-me um ataque de riso e de felicidade repentina; tinha de saltar para a assimilar. Desde então, tentei seguir as suas palavras, mas sem muito êxito. Porém, quem eu mais admirava e queria conhecer, embora isso não tenha acontecido nessa viagem, era Juan Rulfo, que era taciturno e saía muito pouco; Garcia Márquez , que não era deste mundo; Octavio Paz, de quem li toda a poesia e todos os ensaios naqueles meses, mas que agia como um pontífice e não via ninguém, e era necessário solicitar uma audiência com ele com três meses de antecedência; e um poeta mais novo com o qual estava deslumbrado e que ainda me apaixona, José Emilio Pacheco, mas este passava metade do tempo nos Estados Unidos. Nem Rulfo, nem Paz, nem Gabo, nem Pacheco pertenciam ao digníssimo <<Ateneu de Angangueo>>, que era para pessoas mais felizes que famosas e que não levavam tão a sério a sua vida e o seu ofício. Talvez nós, na vida, tenhamos sempre de escolher entre sermos felizes, como Benitez, ou famosos, como Paz; oxalá todos tivéssemos a sabedoria de escolher a primeira coisa, como o meu amigo Iván Restrepo, ou como Monsiváis e a princesa Poniatowska, que são pessoas mais felizes que famosas ou, pelo menos, tão famosas como felizes.
(...)
Em meados desse ano, o avô António escreveu uma carta ao meu pai, muito preocupado. Soubera que eu, no meu ideal de vida proustiano, passava os dias inteiros deitado na cama ou num divã a ler romances intermináveis e bebendo golinhos de vinho de Sauternes, como se fosse uma solteirona retirada do mundo, um Oblomov dos trópicos ou um dândi maricas do século XIX. Nada lhe parecia mais preocupante para a formação da minha personalidade e para o meu futuro que isso e, visto de fora, pelos olhos de um ganadeiro ativo e pragmático, ou inclusivamente com os meus olhos de hoje, tenho de reconhecer que era um tudo-nada aberrante e que talvez o meu avô tivesse razão. Mas o meu pai, como fez durante toda a vida comigo, quando leu aquela carta limitou-se a dar uma gargalhada e a dizer que o avô não percebia que eu estava a fazer por minha própria conta a universidade. De onde sairia aquela confiança em mim, apesar desses terríveis sintomas de indolência? (...)"

Somos o esquecimento que seremos
Héctor Abad Faciolince
Alfaguara (2023)

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente livro.
"Somos o esquecimento que seremos", um título muito sugestivo e muito verdadeiro.