segunda-feira, 22 de abril de 2024

Rituais

Tenho com o Expresso uma relação "amorosa" a qual, muitas vezes, me retira ou inibe o espírito crítico e em outras procura uma justificação plausível para muitas incoerências ou erros que nele acontecem em todas as semanas.

Mesmo irritado com a semana anterior, à sexta-feira (dantes era ao sábado) cumpro o ritual e vou comprar o jornal ao local habitual onde agora, de acordo com a informação do proprietário, já só chegam dois sacos e um deles é quase sempre devolvido.

Esquecido ou perdoado que está o "frete" ao Governo com o título sobre a descida do IRS, fixado na primeira página do número 2685, de 12 de Abril, António, no seu cartoon,  e Miguel Sousa Tavares, em A ruína moral do Ocidente,  confirmam, na semana seguinte, que vale a pena ser teimoso e, enquanto houver edição em papel, cumprir o ritual que já passou o meio século.

"(...) A 14 de Abril, Israel e os seus aliados não apenas detectaram no ar e destruíram 99% dos engenhos de morte enviados do Irão - também detectaram previamente e destruíram 99% das opiniões ou notícias capazes de contrariarem a versão única de mais uma vitória dos bons sobre os maus, da derrota de um ataque não provocado à "única democracia do Médio Oriente". Uma democracia que, em seis meses, liquidou, nas suas casas, nas ruas, nas escolas, nas mesquitas e nos hospitais, 35 mil civis, dos quais 16 mil crianças, e em cujo governo há um ministro que propôs resolver o problema dos 2,3 milhões de palestinianos encerrados em Gaza com uma bomba termonuclear e outro que, mais simplesmente, jurou que "os palestinianos não existem". Se não tivéssemos visto as imagens de quarteirões inteiros em Gaza destruídos com bombas de uma tonelada fornecidas a Israel pelos defensores dos direitos humanos, dos hospitais transformados em campos de batalha, das crianças com olhares esgazeados de fome, ainda poderíamos acreditar, talvez, que isto seria uma guerra da liberdade contra o terrorismo. Se não conhecêssemos a história, poderíamos acreditar que eram os justos a triunfar sobre os usurpadores da "Terra Santa". E certamente que todos dormiremos mais descansados se, no seu exercício de "legítima defesa", Israel destruir as instalações nucleares dos aiatolas. Mas dormiremos mais descansados ou mais pacificados de consciência sabendo a bomba nuclear nas mãos dos fanáticos ortodoxos de Israel, que se declaram "o povo eleito"? Qual é, afinal, o critério moral que nos distingue dos outros? Perguntem às crianças de Gaza, perguntem à rosa de Hiroxima.

Eu fiz jornalismo durante mais de 40 anos. E em todas essas décadas, seguindo a política nacional e internacional, tive muitas vezes de me conter para não confundir a hipocrisia com a própria natureza da política. Mas sempre acreditei que, no fim, seria a independência e a liberdade do jornalismo a prevenir e a evitar que isso acontecesse. Porém, e como já o escrevi a propósito da guerra na Ucrânia, e agora o volto a escrever a propósito da guerra de Israel em Gaza, nunca tinha visto o jornalismo tão submisso à narrativa oficial, tão disposto a abdicar do contraditório e tão avesso a fazer as perguntas ocultas, as perguntas essenciais. Isso, mais ainda do que esta miserável geração de líderes políticos, é o que mais me faz descrer no triunfo das democracias, enquanto resultado de regimes escolhidos por povos informados e livres. Oxalá eu possa estar enganado."

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