terça-feira, 7 de maio de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

A traição à pátria pode estar na ordem do dia de alguns mentecaptos, as origens de cada um, orientais ou rurais, e a história antiga (sempre mal contada), também.

Porém, a língua portuguesa, que une milhões de falantes por esse mundo fora, é sempre bela, riquíssima e cheia de novidades.

" (...) Na mesa da cozinha, Saturnino depositou o taleigo com as aves e gesticulou as suas explicações, descrevendo como o Rossio se achava apinhado de gente, cheio de animação, e que havia sido nas tendas dos comes e bebes que encontrara o Bezerra, na galhofa, a emborcar umas ginjinhas com os seus amigos caçadores; após pagar pelas perdizes, no regresso, vira também uma rapariga bonita e que por isso perdera a noção do tempo. Acerca da destemperada altercação com o fidalgote, nem uma palavra.

- Ah, meu magano, que andas de olho nas cachopas - comentou Fátima, com um sorriso maternal. - Vem daí, ajuda-me a depenar estas perdizes, que o trabalho tarda.

Vivia Domingos Rodrigues com desafogo numa residência de dois sobrados, provida de um pequeno horto murado e um poço de onde retirava água fresca e agradável. No quintal, com terra fácil de amanhar, cultivava-se toda a sorte de legumes de horta e ervas de cheiro a que tanto o mestre como Fátima amiúde recorriam para uso nas suas confecções. Por todo o lado renques de limoeiros e laranjeiras pejados de frutos proporcionavam sombra e uma aprazível fragância pelos ares. Contígua ao edifício principal, achava-se uma antiga estrebaria que em tempos o mestre de cozinha havia transformado para usufruto como oficina e laboratório, não somente para as suas experimentações alimentícias mas também a fim de promover as outras mais secretas, aquelas dedicadas à ciência da alquimia. Apresentava-se a oficina apetrechada com tudo o que fosse necessário para o bom ofício da cozinha, não faltando também o athanor ou forno dos alquimistas, um alambique, cadinhos, cantimploras e diversas retortas de formas variadas e feitios para cumprimento das funções da Arte Magna.

Não obstante as anteriores e infrutíferas tentativas de transmutar os metais, Domingos Rodrigues e João Curvo Semedo haviam compreendido que, através das propriedades e virtudes prodigiosas do ouro, poderiam almejar a prosseguir as suas experiências na fabricação do elixir da vida eterna. Sabiam que não seria tarefa fácil, antes árdua e espinhosa, com inúmeros contratempos, avanços e recuos, mas o caminho  encontrava-se traçado e seria construído com esforço, perseverança e paciência. Os dois amigos não aspiravam apenas à vida eterna, como também ambicionavam alcançar a cura das imperfeições do corpo, provocadas pela erosão dos tempos, aperfeiçoando-o, aprimorando-o, como algo puro, ligando-se assim de maneira inequívoca à Natureza, em comunhão com o Universo que tudo encerra.

Entendiam ambos, e de acordo com os seus herméticos estudos, que o corpo era somente e tão só um vaso de sangue, linfa, carne e ossos, um microcosmos, e que a eternidade seria o macrocosmos, a unidade perfeita de todos os átomos e partículas e a origem de todas as coisas do mundo. Através do elixir, aspiravam a conseguir o ígneo e primordial vínculo à matéria e à energia do divino, como um cordão umbilical, entre o corpo do homem e o Cosmos.(...) "

Os dias de Saturno
Paulo Moreiras

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