quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Eça no Panteão

Era o tempo das Bibliotecas Itinerantes, serviço extraordinário com que a Fundação Gulbenkian levou livros a todos os recantos de Portugal. Já lá vão sessenta anos, ou mais.

Fui "cliente" da carrinha durante bastante tempo e, enquanto isso, foi de lá que trouxe a maior parte dos livros que li. O senhor da carrinha, motorista e bibliotecário, deve ter achado piada ao miúdo que, mensalmente, a ele se dirigia entregando os livros do mês anterior e levando mais dois ou três para o seguinte.

- Já leste tanto que hoje vou dar-te uma surpresa. Lês, não comentas e devolves no próximo mês.

Dobrou-se e, lá de baixo, retirou um livro com uma cinta vermelha. Juntou ao outro que tinha sido escolhido e entregou-me os dois. Não me lembro do que escolhi mas nunca mais me esqueci daquele que o senhor da carrinha elegeu, com um sorriso malandreco.

Devo ter lido "A Relíquia" em dois ou três dias e nunca mais esqueci o livro e a forma como a ele tive acesso. Quando pude, foi dos primeiros (terá sido o primeiro?) que comprei.

Hoje, os restos mortais de Eça de Queiroz foram trasladados para o Panteão Nacional, com a pompa que o grande escritor merece. Fica por lá a fazer companhia a grandes escritores - Sophia, Aquilino - e a outras personalidades portuguesas de relevo.

Por aqui, de vez em quando e sempre com deleite, passo os olhos por alguma das suas grandes obras. E concluo sempre: Eça escreve tão bem!

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"... Estava salvo! Rapidamente, ajoelhei à beira do caixote, cravei o formão na fenda da tampa, alcei o martelo em triunfo ...

- Teodorico! Filho! - berrou a titi, arrepiada, como se eu fosse martelar a carne viva do Senhor.

- Não há receio, titi! Aprendi em Jerusalém a manejar estas coisinhas de Deus! ...

Despregada a tábua fina, alvejou a camada de algodão. Ergui-a com terna reverência: e ante os olhos extáticos surgiu o sacratíssimo embrulho de papel pardo, com o seu nastrinho vermelho.

- Ai que perfume! Ai! ai, que eu morro! - suspirou a titi a esvair-se de gosto beato, com o branco do olho aparecendo por sobre o negro dos óculos.

Ergui-me, rubro de orgulho:

- É à minha querida titi, só a ela, que compete, pela sua muita virtude, desembrulhar o pacotinho! ...

Acordando do seu langor, trémula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo ... Uma brancura de linho apareceu ...

A titi segurou-a nas pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente - e sobre a ara, por entre os santos, em cima das camélias, aos pés da cruz - espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary!

A Relíquia
Eça de Queiroz
Livros do Brasil

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