terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Os tamarindos, além de servirem para compotas, também tinham uma vantagem particular para ele. Chupava os frutos e guardava as sementes castanho-pretas no bolso dos calções. Uma semente, quando esfregada durante meio minuto no chão cimentado de uma sala, aquecia bué. Ele se inclinava na carteira da escola para esfregar a semente no chão sem a professora ver e, quando estava bem quente, tocava com ela na perna da colega sentada à frente. Sucedia sempre um grito da menina, pois aquilo queimava mesmo. A professora nem precisava de perguntar quem tinha feito a maldade, o próprio Santiago levantava do assento com um resignado encolher de ombros e ia se ajoelhar num canto da sala, virado para a parede. O castigo era esse, ficava durante o resto da aula ajoelhado sem nada mais ver, só a parede. Doía mais o castigo do que a queimadura leve na perna da menina? Não se podem comparar as dores. Doíam. A menina, solidária e já esquecida da maldade, depois vinha lhe perguntar se os joelhos estavam muito mal e ele dizia, não é nada, vamos correr até no muro, te ganho de dez metros. Corriam, em competição feliz. Não fazia aquilo para lhe causar sofrimento, era uma brincadeira de criança, ela sabia perdoar. Se chamava Rita e tinha muito bom feitio, sorte de Santiago, como dizia a mãe dele, cansada de ouvir as queixas da Dona Esmeralda, mãe de Rita. Porque lhe fazes aquilo, não percebes magoa? Rita não queixava na mãe, a senhora é que notava as nódoas na perna da filha e a obrigava a confessar, quem te fez isto?, sabendo muito bem qual a resposta. Perguntada a razão do crime, Santiago respondia, não sei explicar, juro mesmo sangue de Cristo, o que exasperava os pais e demais familiares. Não sabes? E ainda por cima meteres Cristo no assunto? Apanhava castigo. Mas não podia evitar, uns dias depois reincidia.

Se tudo tivesse uma explicação, era tão fácil viver. (...)"

Tudo-está-ligado
Pepetela
D. Quixote (2024)

Sem comentários: