sexta-feira, 12 de março de 2021

Dentista

De boca aberta, deitado na cadeira enervante da estomatologista, oiço a conversa que se vai desenrolando entre a técnica e a ajudante. São jovens e têm algumas recordações que me são familiares, criando-me a vontade de participar, mas não posso. A concentração e as alterações que o meu sistema nervoso produz assim que entro naquele consultório, impedem qualquer raciocínio ou frase, para além do "sim" ou do "não", do aceno, do esgar ou do gesto.

O rádio, sintonizado na Antena 2, emite um som meio esquisito, que desperta lembranças às conversadoras.

- Parece o amola-tesouras.

- A doutora lembra-se?

- Lembro-me bem. Era miúda e a minha mãe dava-lhe as facas para afiar.

- E o "pitrolino", recorda-se?

- Isso não. Nem sei o que é.

- Era o homem da carroça, que vendia o petróleo e o azeite, avulso.

- Já só me lembro do azeite engarrafado e petróleo acho que nem nunca vi ninguém comprar.

Silêncio. A concentração no dente é completa.

- Está quase. Deve estar cansado de ouvir estas conversas sem jeito nenhum.

A mão sai do cinto e faz sinal que não há cansaço. A médica continua a sua tarefa, fala dos discos de vinil que o pai ainda tem, diz que se habituou a ler livros digitais e já não quer o papel.

- Até comprei um "ipad" especial, um "kindle". É espectacular.

Acabou! Há que sair da cadeira, agradecer, pagar e desejar às duas a continuação de um bom dia. Mais uma vez, aquilo que para mim é ontem, afinal já nem faz parte do imaginário da grande maioria.

A ida ao dentista correu muito bem e volto lá na próxima semana, para acabar o tratamento ... e ouvir!

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