De boca aberta, deitado na cadeira enervante da estomatologista, oiço a conversa que se vai desenrolando entre a técnica e a ajudante. São jovens e têm algumas recordações que me são familiares, criando-me a vontade de participar, mas não posso. A concentração e as alterações que o meu sistema nervoso produz assim que entro naquele consultório, impedem qualquer raciocínio ou frase, para além do "sim" ou do "não", do aceno, do esgar ou do gesto.
O rádio, sintonizado na Antena 2, emite um som meio esquisito, que desperta lembranças às conversadoras.
- Parece o amola-tesouras.
- A doutora lembra-se?
- Lembro-me bem. Era miúda e a minha mãe dava-lhe as facas para afiar.
- E o "pitrolino", recorda-se?
- Isso não. Nem sei o que é.
- Era o homem da carroça, que vendia o petróleo e o azeite, avulso.
- Já só me lembro do azeite engarrafado e petróleo acho que nem nunca vi ninguém comprar.
Silêncio. A concentração no dente é completa.
- Está quase. Deve estar cansado de ouvir estas conversas sem jeito nenhum.
A mão sai do cinto e faz sinal que não há cansaço. A médica continua a sua tarefa, fala dos discos de vinil que o pai ainda tem, diz que se habituou a ler livros digitais e já não quer o papel.
- Até comprei um "ipad" especial, um "kindle". É espectacular.
Acabou! Há que sair da cadeira, agradecer, pagar e desejar às duas a continuação de um bom dia. Mais uma vez, aquilo que para mim é ontem, afinal já nem faz parte do imaginário da grande maioria.
A ida ao dentista correu muito bem e volto lá na próxima semana, para acabar o tratamento ... e ouvir!
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