domingo, 28 de março de 2021

Livros lidos (ou em vias disso)

Chegou na quarta-feira passada, com a assinatura do autor, prémio por ter sido adquirido em pré-venda. Passou à frente dos que estão na fila por a chegada ter coincidido com o final de Tahirir, de Alexandra Lucas Coelho, e por o autor ser um dos meus preferidos da actual geração de escritores portugueses.

Está a justificar a ultrapassagem. É uma biografia romanceada de Rui Nabeiro, o homem de Campo Maior que hoje completa 90 anos. 

(...) Foi ao entregar a vasilha que a minha mãe me prometeu a nata. Eu conhecia já o desenvolvimento desse gesto, não era a primeira vez. Entrei em casa e sentei-me à mesa com as minhas irmãs, a pequena não estava ainda farta de brincadeira. Sopa de feijão com massa, a minha mãe sempre de pé, a ir de uma tarefa para outra, acabámos de comer em silêncio, as sombras engrossavam nos cantos. Mas a pequena ainda estava esperta, não pensava em sono, e a minha irmã Cremilde fazia-lhe a vontade, as suas vozes a desmontarem-se até serem risos e, sem esforço, a transformarem-se outra vez em vozes. Recolhida a loiça, quando fui buscar o caderno da escola e me sentei à mesa, arrumado ao candeeiro de petróleo, a minha mãe deu ordem às raparigas para irem para o quarto, não se importaram, sabiam que lá estariam mais soltas. O carvão do lápis, no papel, sob a luz do candeeiro, penumbra, era feito de sombra, escrevi letras com sombra. O tempo, a minha mãe e eu, todos os objectos de cozinha.

E, há poucos minutos, voltei a guardar o caderno, os trabalhos terminados, aptos para o olhar do professor e, imediatamente, os sons do alumínio e do esmalte, a vasilha de alumínio a verter o leite para o púcaro de esmalte. Apercebo-me ainda do momento em que arrumei o púcaro às brasas, a raspar o chão de cinzas, ao lado da cafeteira com água que está sempre encostada ao lume. Esse momento aconteceu e está ainda a acontecer, existiu o ponto em que tudo era nesse momento, e existe este ponto arrastado em que é um eco, imagem desfiada, composta por notícias em que só agora reparo.

Interrompendo um raciocínio, de repente, como se me quisesse apanhar desprevenido, o leite sopra um arrufo e lança-se; mas os meus reflexos são imediatos, inclino-me e puxo o púcaro. A minha mãe dá conta desse gesto. Tem tudo preparado, abre a lata do café. (...)

Almoço de Domingo
José Luís Peixoto
Quetzal (2021)

1 comentário:

Anónimo disse...

Tanto disto me parece-me tão próximo e familiar.