quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Numa tarde do mês de Março de 1955, quando se preparava para servir o chá, a menina Fabre surpreendeu as suas alunas numa grande conversa. Os estudantes do secundário estavam em greve havia uma semana, por causa de uma jovem que um professor humilhara. Ele acusara-a de ter escrito uma composição subversiva sobre o combate de Joana d'Arc contra os Ingleses e de ter aproveitado a disciplina de História para manifestar as suas amizades nacionalistas. Do andar de cima, chegava-lhes o riso dos trabalhadores que reparavam o telhado da menina Fabre e as raparigas não se contiveram e tentaram vê-los. A dona da casa serviu, à moda dos Marroquinos, com um gesto amplo e cerimonioso, o chá de menta em copos lascados. Aproximou-se de Selma.

- Venha comigo, menina, quero falar consigo.

Selma seguiu-a até à cozinha. Perguntou-se qual seria o motivo daquela conversa à parte. Teve vontade de dizer que se estava a borrifar para a política, que a sua cunhada era francesa, que não tomava o partido de ninguém, mas a menina Fabre sorriu-lhe e convidou-a a sentar-se a uma mesinha de madeira, na qual estava pousado um cesto com fruta coberta de mosquinhas. A menina Fabre esticou as pernas. Durante uns minutos, que pareceram infindáveis a Selma, perdeu-se na contemplação da buganvília que se espraiava, em enormes cachos malvas, sobre o muro ao fundo do jardim. Pegou num pêssego demasiado maduro, com a casca a descolar, e deparou com a polpa escura e mole.

- Soube que deixou de ir às aulas.

 Selma encolheu os ombros.

- Para quê? Não entendia nada.

- A menina é uma tonta. Sem estudos, não será ninguém na vida.

Selma ficou surpreendida. Nunca ouvira a menina Fabre exprimir-se daquela maneira, dar mostras de tamanha severidade junto de uma das adolescentes.

- É por causa de algum rapaz, é isso?

Selma corou e, se pudesse, teria fugido a sete pés e nunca mais a veriam naquela casa. As pernas começaram a tremer-lhe e a menina Fabre pousou uma mão no joelho dela.

- Julga que não compreendo? Provavelmente pensa que nunca estive apaixonada.

<<Faz com que ela se cale. Faz com que ela me deixe ir embora>>, pensou Selma, mas a velha continuou, roçando os dedos na sua cruz de marfim, que, de tanto ser acariciada, estava lustrosa.

- Hoje está apaixonada e é maravilhoso. Acredita em tudo o que os rapazes lhe dizem. Está convencida de que isso vai durar e que eles vão gostar sempre tanto de si como gostam agora. Comparado com isso, os estudos não têm importância. Mas a menina não sabe nada da vida! Um dia, se sacrificar tudo por eles, vai ficar sem nada e dependente dos mais pequenos gestos deles. Dependente da boa disposição e afecto dos homens, à mercê da brutalidade deles. Acredite que devia pensar no seu futuro e estudar. Os tempos mudaram. Não tem de abraçar o mesmo destino que o da sua mãe. Pode vir a ser alguém, advogada, professora, enfermeira. Ou até aviadora! Não ouviu falar daquela rapariga, a Touria Chaoui, que conseguiu o brevet de piloto com apenas dezasseis anos? A menina pode ser quem quiser, desde que faça por isso. E nunca, nunca pedirá dinheiro a um homem. (...)"

O país dos outros
Leïla Slimani
Alfaguara (2021)

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Se ...

E se, de repente, houvesse paz no mundo?

E se, de chofre, os pobres ficassem remediados?

E se, bruscamente, passasse a haver respeito por todos?

E se, sem pressas, toda a gente chegasse a tempo?

E se, sem falsos pudores nem nomenclaturas de ocasião, todos fossem livres?

E se, ostensivamente, desaparecessem os preconceitos?

E se ... te calasses no teu cantinho e te deixasses de parvoeiras sem nexo?

domingo, 8 de dezembro de 2024

Manhã fria

O João não está nada Feliz e tem muita pena de A Canária ter ficado tão tremida.

Paciência. Estava muito vento, frio, e a habilidade é pouca!



sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Londres era, então, uma das maiores cidades do mundo: no dealbar do século XIX, tinha cerca de um milhão de habitantes e, no final desse mesmo século, quase sete milhões. Os muitos milhares de cavalos que eram utilizados como transporte levariam à grande crise do estrume, The Great Manure Crisis, em 1894, ameaçando soterrar Londres em bosta (cerca de meio milhão de quilogramas por dia) e urina (57 000 litros por dia). O problema haveria de tomar proporções tão graves, que um jornal, publicado nesse momento de crise, vaticinava que em cinquenta anos todas as ruas de Londres estariam cobertas por uma camada de estrume com três metros de altura. O presságio não se cumpriu, pois apareceram outras formas de transporte para substituir o cavalo. Todas elas, incluindo o automóvel, acabaram por ter consequências globais bem mais graves do que o estrume.

Num mercado de rua, Fuegia estendeu a mão, apanhou uma maçã e trincou-a. O vendedor gritou com ela. Nenhum dos três fueguinos compreendia exactamente o que se passava, de onde vinham aqueles gritos, pois nunca incorporaram completamente a noção de que a comida só era acessível em determinadas condições, muitas vezes em troca de dinheiro, fazendo uso dos tais botões brilhantes. Para eles, uma pessoa poderia ter, como propriedade individual, um cesto ou uma arma - não no sentido que damos à propriedade, mas por uso directo ou constante usufruto -, mas não poderia ser dono da comida. A comida pertence a todos. A quem pertence um guanaco, senão a Watawineiwa, que dá vida a todos os seres? Quem criou o guanaco? Uma pessoa pode fazer armas, roupas, cestos, são suas, mas as frutas das árvores, bem como as próprias árvores - ou as estrelas ou a chuva ou os albatrozes -, não podem pertencer a ninguém senão a Watawineiwa, que dá vida a tudo.

Londres era um mundo realmente diferente. Não o compreendiam, e não eram compreendidos.

Nenhum dos três fueguinos tinha palavras para dizer <<exército>> ou <<polícia>>. (...)"

O que a chama iluminou
Afonso Cruz
Companhia das Letras (2024)