sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Londres era, então, uma das maiores cidades do mundo: no dealbar do século XIX, tinha cerca de um milhão de habitantes e, no final desse mesmo século, quase sete milhões. Os muitos milhares de cavalos que eram utilizados como transporte levariam à grande crise do estrume, The Great Manure Crisis, em 1894, ameaçando soterrar Londres em bosta (cerca de meio milhão de quilogramas por dia) e urina (57 000 litros por dia). O problema haveria de tomar proporções tão graves, que um jornal, publicado nesse momento de crise, vaticinava que em cinquenta anos todas as ruas de Londres estariam cobertas por uma camada de estrume com três metros de altura. O presságio não se cumpriu, pois apareceram outras formas de transporte para substituir o cavalo. Todas elas, incluindo o automóvel, acabaram por ter consequências globais bem mais graves do que o estrume.

Num mercado de rua, Fuegia estendeu a mão, apanhou uma maçã e trincou-a. O vendedor gritou com ela. Nenhum dos três fueguinos compreendia exactamente o que se passava, de onde vinham aqueles gritos, pois nunca incorporaram completamente a noção de que a comida só era acessível em determinadas condições, muitas vezes em troca de dinheiro, fazendo uso dos tais botões brilhantes. Para eles, uma pessoa poderia ter, como propriedade individual, um cesto ou uma arma - não no sentido que damos à propriedade, mas por uso directo ou constante usufruto -, mas não poderia ser dono da comida. A comida pertence a todos. A quem pertence um guanaco, senão a Watawineiwa, que dá vida a todos os seres? Quem criou o guanaco? Uma pessoa pode fazer armas, roupas, cestos, são suas, mas as frutas das árvores, bem como as próprias árvores - ou as estrelas ou a chuva ou os albatrozes -, não podem pertencer a ninguém senão a Watawineiwa, que dá vida a tudo.

Londres era um mundo realmente diferente. Não o compreendiam, e não eram compreendidos.

Nenhum dos três fueguinos tinha palavras para dizer <<exército>> ou <<polícia>>. (...)"

O que a chama iluminou
Afonso Cruz
Companhia das Letras (2024)

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