domingo, 4 de setembro de 2022

Ânsias

Tropeçou num calhau, caiu desamparado, fez um galo na testa. A mãe, ao apalpar a saliência, calou o choramingas, dizendo:

- Vai cantar à meia-noite.

Não cantou. No dia seguinte ainda estava negro. Devia ter posto gelo. O frigorífico tinha ido de férias. Dois dias depois o galo já não existia. O aviso surgiu, solene, como convém a qualquer aviso que se preze.

- Tens de ter cuidado. Não podes andar sempre a correr, a escaravelhar, a saltar como as cabrinhas. Só me dás fezes!

Nunca parava quieto e a mãe, como todas as mães, preocupava-se.

- Parece que tens bicho carpinteiro.

Não tinha bicho. Era a curiosidade que o movia. A ânsia de ver, de perceber, de saber. Ouvia, perguntava, muitas vezes obtinha como resposta um esclarecedor

- Cala-te!

e continuava a cuscar, a espreitar com receio de que algo escapasse à sua reduzida sagacidade e à dificuldade de entender os adultos. Esforçava-se, mas era difícil, muito difícil.

A concentração era pouca ou nenhuma. A atenção dispersava-se de um lado para o outro, com a elasticidade da gazela e a velocidade da chita. Os olhos percorriam tudo e acabavam por nada reter. Tudo era novo, aliciante, provocador, interessante, estimulante. E tinha "pressa de saber, que a vida é água a correr". 

Cresceu. Manteve a curiosidade, a pressa, a ânsia, o estímulo do desconhecido.

Se tivesse crescido hoje, era hiperactivo e talvez fosse medicado com Ritalina ...

1 comentário:

Anónimo disse...

Ser difícil, não quer dizer ser impossível.
E quem porfia, sempre alcança.
Nunca desistir.