quarta-feira, 16 de junho de 2021

Condução de risco

Um fim de tarde outonal, regado por uma violenta chuvada que apanhou toda a gente de surpresa. A estrada, larga, de paralelo granítico hoje em dia já raro, não convidava a velocidades e muito menos a travadelas bruscas. As primeiras chuvas após o Verão são sempre traiçoeiras e oferecem dissabores quando menos se espera. Todo o cuidado é pouco e uma distracção pode ser a "morte do artista".

Os recrutas saíam em magote do quartel, ávidos do aproveitamento de um pouco de sol discreto que havia surgido e da vida "civil" que a cidade oferecia. Era a rotina diária, quando não havia instrução nocturna. Um passeio antes do recolher, comer qualquer coisa diferente do rancho, ouvir outras vozes, conhecer a terra e apreciar as beldades.

A condutora deve ter ficado perturbada com tantos e tão garbosos jovens. O travão, as mãos ou o destino levaram a viatura a galgar o passeio e a colher sete militares. Poderiam ter sido setenta. Por sorte, foram apenas sete e nenhum em estado grave. Veio o Oficial-Dia, o Sargento da Guarda, o Comandante da Instrução e, claro, a PSP, para além da ambulância, que recolheu os feridos para a enfermaria.

Ninguém tinha dúvidas de que a culpa era da incúria da senhora. A tropa levantou o auto, a polícia instruiu o processo. Passados vários meses, o Tribunal marcou a audiência. Meia dúzia de testemunhas atestaram a normal excelência da condução da senhora, o Delegado pediu que fosse feita justiça, o causídico da defesa levantou-se e desenvolveu a sua tese em busca da absolvição da ré. A sua eloquência mostrou, à saciedade e à sociedade que o acidente apenas tinha acontecido exactamente por "acidente acidental" e nunca por inépcia da condutora. Talvez alguma deficiência técnica da viatura, algum obstáculo na estrada, qualquer coisa de imprevisível que não foi possível descortinar naquele momento. Todavia, de uma coisa não havia dúvidas: tinha sido a destreza e o sangue-frio da condutora a evitar uma tragédia. Aquele magote de instruendos, saídos do quartel sem os cuidados necessários e num tropel inconcebível, teria sido dizimado não fosse a perícia da mulher que estava ao volante. 

A absolvição pedida foi sancionada pelo Juiz, por não ter sido possível provar, em julgamento, negligência, insensatez ou culpabilidade. Na leitura da sentença, o Juiz não se esqueceu de recomendar à senhora que, ao passar pelo quartel, se não distraísse com a paisagem.

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