quarta-feira, 30 de junho de 2021

Contrato

Até no andar não se fazia notado, apesar de sempre apressado. Mal punha os pés no chão, e mesmo por cima das folhas, o seu caminhar era discreto. Só os mais atentos descortinavam a sua aproximação e nem sempre isso acontecia. Ficava visivelmente satisfeito quando chegava sem ninguém dar por ele.

Era um caçador exímio, senhor de uma pontaria invulgar e conhecia todos os sítios que "cheiravam" a caça, locais de perdizes ou narcejas, galinholas, codornizes ou coelhos. Lebres não, que era espécie que por ali não aparecia. Mesmo trôpego, mantinha a suavidade do andar e o gosto de atirar, no fim já só aos coelhos, que as espécies de penas exigiam mobilidade que já não tinha. Esperava, pacientemente, que o bicho saísse da lura, deixava-o correr alguns metros, disparava um tiro e ... coelho na sacola.

A voz era sussurada e ligeiramente sibilada. Era necessária muita atenção do interlocutor para se perceber o que queria transmitir, mas ninguém se atrevia a pedir-lhe para falar mais alto. Era tempo perdido. Aquele era o seu tom e dele nunca abdicou, quer se dirigisse às gentes mais simples quer à fidalguia.

Contava-se que, quando pediu à noiva que com ele casasse, lhe terá dito:

- Só tem uma condição: não quero que, lá na nossa futura casa, alguém fale mais alto do que eu ...

O contrato foi aceite e permaneceu válido a vida inteira. Naquele lar, nunca ninguém levantou a voz e todos se entendiam sem dificuldade.

1 comentário:

Anónimo disse...

Hoje, tal pedido seria encarado como prepotência, machismo e violência doméstica, pela subjugação a que a noiva se sujeitou, mesmo vivendo ambiente de falas mansas.