quarta-feira, 9 de junho de 2021

Livros lidos e lembranças

Talvez alguém tenha reparado na rapariga que viveu na Rua do Loreto, na paragem do 28. Não dizia coisa com coisa. Ele, o combatente, estacionava carros ruas abaixo, na António Maria Cardoso. Ter-se-ão cruzado ou não, terão conversado ou não, foram contemporâneos como duas árvores, dois cães vadios, dois actores, são contemporâneos. Ele andava sempre de manga curta, nunca tinha frio. Ela vestia uma longa saia, camisolas negras e rasgadas. Tapava-se com caixotes. Dormia à chuva. Quem sabe se notavam que mudávamos de passeio para os evitar, mudar de passeio no qual ia a nossa morte e não a sua.(...)

Maremoto
Djaimilia Pereira de Almeida

Nunca vivi, felizmente, na paragem do 28 da Rua do Loreto, mas utilizei-a muitas, muitas vezes. Morava na Damasceno Monteiro e trabalhava no Largo do Calhariz. O 28 era o transporte que utilizava, por ser o mais barato e o que me punha no trabalho e em casa, sem transbordos nem grandes distâncias a pé. 

Logo pela manhã, subia até ao Largo da Graça, cumprimentando a vizinhança, tomava a bica na Parreirinha e aguardava a chegada do amarelo, que subia a Voz do Operário tilintando a avisar o perigo que representava a sua enorme velocidade. Mal parava, o guarda-freio mudava a alavanca da, até aí, frente, para a traseira, que passava, agora, a ser a frente, enquanto o "pica" alterava as meias-portas, fixando as ripas no lado contrário e libertando as do lado que, em seguida, seriam utilizadas. Depois, um deles rodava o letreiro enquanto o outro, cá fora, indicava quando os Prazeres substituíam a Graça no visor electrónico

Tudo gostoso, como diria, sorrindo, qualquer brasileiro. Ter prazeres e graça de seguida não é nada fácil, mas é salutar.

Os utilizadores normais, que tinham bilhete, entravam pela porta da frente e sairiam pela traseira, quando chegasse ao seu destino, fosse ele Prazeres ou qualquer outro. Usufruíam, nessas inolvidáveis viagens, de um transporte não poluente e beneficiavam do ar condicionado ao tempo que fazia cá fora, sem alterações que contribuíssem para alguma incómoda constipação ou gripe. A chuva entrava pelas meias-portas como "cão por vinha vindimada", molhando o piso, os bancos, a manga do casaco do guarda-freio e até o seu boné. O "pica" encolhia-se no corredor, sabendo que, lá mais abaixo, no final da Calçada de S. Vicente, teria de saltar e, com a ferramenta adequada, fazer a mudança da agulha. Ansiava que a chuva apanhasse outro eléctrico até este lá chegar!

Os penduras utilizavam os confortáveis lugares na parte de fora, lá atrás, nas portas fechadas, nos estribos, bem encostadinhos ao amarelo, não fosse a parede, distraída, roçar as suas costas e tirar-lhes a pintura. E saltavam em andamento, com uma agilidade que deixava o pica sempre a meio da frase

- Sai ... daí.

Já lá não estavam!

As coisas que a gente se lembra por associação de ideias.

2 comentários:

Anónimo disse...

Fabulosa memória regressiva!🤣

Anónimo disse...

"Nunca mais ninguém esperara pelo eléctrico na paragem. As pessoas mudavam de passeio, algumas insultavam-na. Preferiam apanhar chuva a aproximar-se dela. De vez em quando, o pessoal da Câmara levava tudo e Fatinha começava a reconstruir o seu abrigo do nada, no dia seguinte, sem lembrança do que lhe tinham levado, como alguém que se esquece da página do livro lida na noite anterior."

pág. 103