terça-feira, 28 de julho de 2020

Carta de condução

Há exactamente 50 anos recebi a autorização para, legalmente, conduzir qualquer viatura automóvel ligeira.
De manhã, bem cedo, o Carocha da escola de condução, conduzido pelo instrutor que mal me conhecia - só tive três aulas de condução das cinco que fui obrigado a adquirir - dirigiu-se a Santarém com os quatro alunos que, nesse dia, se iriam submeter a exame. 
No banco de trás, no meio de dois matulões e sentado quase no ar, ia um miúdo de 18 anos feitos três meses antes, acabado de emancipar por autorização notarial paterna. Naquela época, era-se maior aos 21 anos e só a emancipação paternal permitia o acesso à carta de condução (ou ao casamento) antes dessa idade. Aos 18 anos e para quem conduzia desde os 15 ensinado pelo pai, o convencimento de que o exame seriam favas contadas era verbalizado com alguma exuberância.
Na viagem, demorada pelas curvas da estrada nacional 114 e pela pouca velocidade do Carocha, a conversa foi sempre à volta da possibilidade de não serem realizados os exames previstos. 

- O Botas bateu a bota ontem, se calhar temos de cá voltar noutro dia, dizia o instrutor.
 
Mas houve. O Botas, afinal, nem na morte deu um feriadito.

Chegados ao jardim, estacionado o Carocha, ficámos a aguardar as novidades que o instrutor haveria de trazer dos seus contactos "oficiais".

- Vocês os três vão fazer exame com o Engenheiro "Fulano" e tu vais para o "Sicrano".
 
Já não recordo os nomes, mas tenho a ideia de o meu ser qualquer coisa Sereno.
Estava um calor de ananases ao contrário do tempo nas Caldas, como ainda hoje acontece.
Por volta do meio-dia, o Engenheiro chamou pelo meu nome.
 
- Onde está o carro?
- Anda um colega a fazer exame com ele. 
- Então vamos fazer o Código aqui.
 
Com os dois sentados num banco do jardim, à sombra de um arbusto agradável, o homem debitou as perguntas e o miúdo creditou as respostas.
- Estudaste bem!, comentou no fim.
 Finalmente, o "meu" carro chegou e o instrutor nem saiu do banco de trás.
Com algum nervoso miudinho mas cheio de certezas de que sabia muito daquilo, sentei-me ao volante e dei à chave.
- Vira à direita.
Cumprida a paragem no Stop, entrei na grande avenida e percorri a cidade, de acordo com as instruções que ia recebendo, subindo, descendo, arrumando entre dois, fazendo ponto de embraiagem, etc.
- Isso não anda mais? Tenho de ir almoçar!
- Então não anda! É só acelerar.
- Arruma, que está terminado.
 
Fomos almoçar todos, dividimos a despesa excluindo o instrutor e, a meio da tarde, soubemos os resultados: três tinham passado, mas havia um chumbo.
Convencido, não esperava que o chumbo me tivesse contemplado. E confirmou-se.
Regresso a casa, já com o dia a terminar e o papel provisório bem guardado no bolso.
- Então, passaste?, perguntou o meu pai. 
- Claro! Ou esperava outra coisa?, respondi, ufano. 
- Quem foi o Engenheiro?
- "Sicrano"
- Engraçado. Há mais de vinte anos, também foi ele que me fez o exame.

Naquele tempo, tudo demorava a mudar. 

3 comentários:

Anónimo disse...

Gostei! Este texto, fez-me recordar e sorrir.

Anónimo disse...

Cartas da "Farinha Amparo"...

Ads disse...

Sou "cliente" assíduo deste espaço, onde diariamente o autor nos brinda com autênticas pérolas, muitas delas de recordações guardadas nas arcas e baús da sua memória. E recordar a data em que tirou a carta de condução é uma dessas memórias. Era um estatuto que qualquer jovem queria ter. Mesmo que não tivesse automóvel. Há cinquenta anos o ter um carro não era para todos. Também eu passei por Santarém, cinco anos antes, não para tirar a carta, mas para um "estágio" de três meses na Escola Prática de Cavalaria.
Peço-lhe que continue a escrever (porque até escreve bem…), sejam memórias ou não. Os seus amigos querem "cuscar" os segredos guardados nos seus baús.
E nos intervalos… não deixe as suas leituras nem as idas à Foz.