segunda-feira, 13 de julho de 2020

O lenço

As rotinas faziam parte do seu dia a dia, tal como o Sol acordava todas as manhãs. 
Fato cinzento, camisa branca, gravata azul, um dia escuro, no outro claro, sapatos pretos, de atacador, sempre bem engraxados. Depois da bica, tomada na leitaria da esquina, então sim, ficava bem acordado.

- Bom dia, menina Alice. Já chegaram os jornais de hoje?

Invariavelmente deitava os olhos para a primeira página d'O Século e comprava o Diário de Notícias, deixando quinze tostões no balcão.

- Até logo, menina Alice. Ainda não lhe disse mas traz hoje uma blusa muito bonita. Quem me dera ser blusa...

O "28" chegava ao Largo, vindo dos Prazeres. Enquanto o guarda-freio mudava a manivela, inox e bem grande, para a, até ali, traseira, o pica alterava as cancelas de entrada e saída, e informava os passageiros que aguardavam, que partiriam daí a cinco minutos.
Acomodava-se num banco duplo para ter espaço e abria o jornal, enorme. Começava assim o dia deste funcionário da Fazenda, que entrava na repartição da Baixa às nove horas. Eram sempre oito e vinte cinco nesta altura.
À hora, como sempre, o eléctrico partiu, descendo a íngreme rampa que os levaria até S. Vicente, à Sé e, finalmente, à Rua da Conceição. A partir daí já ele pouco conhecia. Só tinha ido até aos Prazeres uma vez e verificou, uma vez mais, que prazeres não era muito o seu género. 
A meio da rampa, junto à Voz do Operário,  a primeira paragem.
Calças e casaco de cotim cinzento, alpargatas azuis desbotadas, camisa de popeline aos quadrados, não mais de onze anos. Só podia ser marçano numa das retrosarias da Rua da Conceição.
Ladino, viu o jornal aberto e não deixou fugir a oportunidade.
Sentou-se.
O funcionário, zeloso e rotineiro, encostou-se mais à janela, sem sequer o olhar.
O puto espreitou as notícias e fungou ruidosamente.
Mais um pequeno encosto e nova espreitadela, acompanhada de nova fungadela.
Visivelmente incomodado, o zeloso funcionário encostou-se ainda mais e murmurou, para dentro, um impropério dirigido a "esta mocidade".
Já tinham descido S. Vicente e a Sé estava à vista. 
A página do desporto era apelativa. Benfica-Sporting no dia anterior com vitória, claro, das águias, o puto queria ler tudo antes da paragem onde sairia e ela já estava mesmo ali.
Encostou-se ainda mais, debruçou-se para ler em baixo, quase cavalgou o homem, fungou, espreitou, fungou de novo.
Não resistiu.
- Ó menino, não tem um lenço?
- Tenho ... mas não empresto! 

1 comentário:

Anónimo disse...

Se fosse hoje, o tal funcionário, mandava pôr a máscara e exigia 2m de distanciamento.