As memórias da infância e juventude são hoje bem mais claras do que aquilo que fiz de manhã. De acordo com o que dizem os estudiosos, é normal que o "computador" pessoal despreze o que aconteceu há pouco e privilegie aquilo que tem anos esquecidos, já não tem jeito nenhum, poucos se lembram e, para a grande maioria, é uma estucha perfeitamente dispensável. Também diz quem sabe que é comum fazer ligações entre o que acontece no momento e coisas passadas e arrumadas.
O Prémio Nobel da Literatura de 2020 foi hoje atribuído a uma poeta americana - LOUISE GLUCK - que não conhecia e continuo a não conhecer, por nunca ter lido nada por ela escrito. Talvez por ter sido escolhida a poesia, veio-me à memória, não a frase batida do Sérgio Godinho, mas a Balada da Neve, de Augusto Gil, que decorei há muitos, muitos anos e ainda permanece, vejam só, na primeira "gaveta do arquivo" memorial. E, diga-se de passagem, nesse tempo eu mal sabia o que era nevar e nunca tinha visto sequer uns farrapitos ...
BALADA DA NEVE
Batem leve, levemente,Como quem chama por mim.Será chuva? Será gente?Gente não é, certamentee a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:mas há pouco, há poucochinho,nem uma agulha buliana quieta melancoliados pinheiros do caminho ...
Quem bate, assim, levemente,com tão estranha leveza,que mal se ouve, mal se sente?Não é chuva, nem é gente,nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caíado azul cinzento do céu,branca e leve, branca e fria ...- Há quanto tempo a não via!E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.Pôs tudo da cor do linho.Passa gente e, quando passa,os passos imprime e traçana brancura do caminho ...
Fico olhando esses sinaisda pobre gente que avança,e noto, por entre os mais,os traços miniaturaisduns pezitos de criança ...
E descalcinhos, doridos ...a neve deixa ainda vê-los,primeiro, bem definidos,depois, em sulcos compridos,porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecadorsofra tormentos, enfim!Mas as crianças, Senhor,porque lhes dais tanta dor?!Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,uma funda turbaçãoentra em mim, fica em mim presa.Cai neve na naturezae cai no meu coração.
Augusto Gil (1873-1929)
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