quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Memória

As memórias da infância e juventude são hoje bem mais claras do que aquilo que fiz de manhã. De acordo com o que dizem os estudiosos, é normal que o "computador" pessoal despreze o que aconteceu há pouco e privilegie aquilo que tem anos esquecidos, já não tem jeito nenhum, poucos se lembram e, para a grande maioria, é uma estucha perfeitamente dispensável. Também diz quem sabe que é comum fazer ligações entre o que acontece no momento e coisas passadas e arrumadas.

O Prémio Nobel da Literatura de 2020 foi hoje atribuído a uma poeta americana - LOUISE GLUCK - que não conhecia e continuo a não conhecer, por nunca ter lido nada por ela escrito. Talvez por ter sido escolhida a poesia, veio-me à memória, não a frase batida do Sérgio Godinho, mas a Balada da Neve, de Augusto Gil, que decorei há muitos, muitos anos e ainda permanece, vejam só, na primeira "gaveta do arquivo" memorial. E, diga-se de passagem, nesse tempo eu mal sabia o que era nevar e nunca tinha visto sequer uns farrapitos ...

BALADA DA NEVE

Batem leve, levemente,
Como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.
É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia 
dos pinheiros do caminho ...
Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza, 
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía 
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria ...
- Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!
Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho ...
Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança ...
E descalcinhos, doridos ...
a neve deixa ainda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...
Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!
Porque padecem assim?!...
E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza
e cai no meu coração.

Augusto Gil (1873-1929)

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