quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Quotidiano

Já não íamos ao cinema, ou a qualquer outro espectáculo, há mais de seis meses. A vinda do filme "O ano da morte de Ricardo Reis", de João Botelho, a uma das salas do La Vie, decidiu-nos. Tínhamos lido o livro, tínhamos visto a peça de teatro, fantástica, encenada para A Barraca por Hélder Martins da Costa, era imperioso não faltar ao filme.

- Vamos na terça-feira, à sessão da tarde. Não deve haver muita gente, depois do feriado.

A sessão começava às seis e vinte mas, à cautela, às cinco horas estávamos na bilheteira. A sala é pequena e, com as restrições existentes, a lotação deveria ser de apenas metade da normal. Preocupações de idoso ...

- Não vêm cá desde que começou a pandemia, certo?

- Sim!?

- Nós agora não temos lugares marcados. Pedimos às pessoas que deixem uma ou duas cadeiras vagas, atrás e ao lado. E também não temos intervalo, para evitar que as pessoas se juntem.

- Está bem. E já venderam muitos bilhetes?

- São os senhores os primeiros.

A pressa, afinal, não tinha qualquer justificação. Efectuado o pagamento, com desconto sénior, fomos passear pelo centro comercial, para "matar" o tempo. Montras, uma exposição de arte africana, uma visita à Bertrand a espreitar as novidades,

- Não vais comprar livros agora ...

e lá subimos ao terceiro andar, quando faltava um quarto de hora para o início da sessão. A menina da bilheteira, simpática, veio ter connosco.

- Se quiserem, podem entrar. A sala já está higienizada e estão melhor sentados.

Agradecemos a preocupação e lá fomos. 

Sessão exclusiva! Nem sequer um outro espectador! A sessão foi igual à que seria se a lotação estivesse esgotada: houve publicidade, os thriller e, finalmente, surgiram as imagens a preto e branco, com uma música de fundo muito agradável. 

Já tinha decorrido mais de hora e meia. Concentrado nas imagens, nos diálogos e nos surgimentos do Pessoa, morto mas dialogante, mal ouvi o sussurro:

- Parece-me que deixei o fogão ligado ...

Não valia a pena pedir ao Pessoa para ir lá verificar. Estava ocupado com os amores do Ricardo Reis, confinado ao ecran e dali não saía. Arriscar era perigoso. E se fosse verdade?

A sala ficou apenas com as cadeiras, mas o filme deve ter chegado ao fim, pró boneco. O trânsito ainda fez perder algum tempo, com um passeante que estorvava, outro que circulava a dez à hora, mas nem cinco minutos depois os portões abriram-se.

- Que sorte! Está tudo esturricado, mas o tacho aguentou-se.

As ervilhas tinham-se transformado em bolinhas negras, mais parecendo chumbo para caça grossa. O cheiro era forte.

O resto do filme ficará para quando a televisão o transmitir.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente! Dava outro filme.