sexta-feira, 16 de outubro de 2020

Livros lidos (ou em vias disso)

Concluí ontem a leitura do Apelo da Noite, de Vergílio Ferreira, último livro da "biblioteca itinerante" que o meu amigo ADS fez o favor de enviar da capital para o Oeste. Já o arrumei no saco, verde, claro, (ou não fosse ADS do SCP), onde se juntou aos outros dez que fazem parte do lote disponibilizado. Ficam ali todos, sossegados, a aguardar que o Corona permita viagens sem receios e encontros sem condicionantes. Dar-se-ão bem, sem qualquer dúvida. São de gente importante das letras que, tirando alguns arrufos, se consideram ou toleram.

Nem de propósito, o carteiro, não o que toca sempre duas vezes, mas o que habitualmente vem à minha zona, uma boa zona, diga-se, entregou-me o último livro de António Lobo Antunes que, naturalmente, já comecei a ler. Ultrapassou os que aguardam na "pilha" da secretária, por ter sempre caminho aberto cá em casa, há já muitos anos. Todos compreenderam a urgência e se reduziram à sua insignificância perante quem não tem adjectivo que o qualifique.

Ninguém escreve como António Lobo Antunes. Exige concentração máxima, mas a escrita é irresistível, encadeada, pautada por apontamentos de ligação, recordações, evidências, diálogos simultâneos com o antes e o agora, pensamentos de clarificação, vozes de dentro, sempre uma delícia que se deseja não acabe.

Este começa assim:

"Quando acabei a tropa um colega ruço de olho esquerdo desviado que quase nunca andava conosco, sempre metido em assuntos lá dele, arranjou-me emprego na oficina de automóveis do pai no alto das Pedralvas, uma colina de pobres a norte de Lisboa com casas velhas e barracas e ruazitas estreitas, de modo que aluguei um quarto por ali com direito a banho duas vezes por semana, às terças e sábados, e um janelico para um quintalzinho vedado a tábuas de andaime no qual existia um limoeiro ferrugento onde nunca vi nenhum limão, só vespas desiludidas, inclinado sobre o pedaço de muro em que poisava o cotovelo, a senhoria, sempre de avental e chinelos que a adivinhar pelo tamanho deviam ter pertencido ao marido, evaporado há anos na confusão da cidade que não pára de engolir gente, também com tantas esquinas não admira, só não entendo como é que não nos devora a todos, chamava-me às vezes para uma sopita comida na cozinha minúscula sem olharmos um para o outro, ela no único banco que sobrava e eu encostado ao lava loiça, sob uma lâmpada insegura a pestanejar

(dava-me um piparote, melhorava num soslaio agudo para nós e recomeçava a tremer, que vida difícil têm as coisas sem uma alma caridosa que as ajude)

enquanto um cão ladrava num beco às escuras e calava-se sei lá onde num suspiro comprido em que agonizavam fogareiros, no fim da sopa a senhoria lavava os pratos com uma esponja sumária e fechava-se na salita porque de quando em quando lhe escutava a tosse, puxando pedaços de si mesma até à garganta de modo que os chinelos solitários lá em baixo e ela na alegria aflita de me saber por ali enquanto as acácias das redondezas se calavam uma a uma, mais longe do que os comboios no escuro, dava-me ideia que nas Pedralvas nós apenas, presos um ao outro por um fio de silêncio que apesar de tudo sempre diminuía a solidão, quase apostava que de tempos a tempos vinha espreitar-me a dormir, cobrindo-me um tornozelo com o fim do lençol a reprimir uma festa desajeitada com demasiados dedos que me tropeçavam na pele, deixando-me, depois de se ir embora, mais abandonado ainda, a lembrar-me da minha mãe nas Caldas da Rainha, debruçada para mim a apontar o queixo ao meu pai (...)

Diccionario da linguagem das flores
António Lobo Antunes
D. Quixote 2020

2 comentários:

Anónimo disse...

És um devorador de livros!

Anónimo disse...

Nem me atrevo a interromper... apenas queria desejar uma boa leitura.
"O vale era verde" no filme de John Ford.
"O saco era verde" na escrita do OSS.