domingo, 21 de fevereiro de 2021

Guerra colonial

Pertenço a uma geração que cumpriu o serviço militar obrigatório. No meu caso, entrei no tempo da "outra senhora" e por lá andava no dia 25 de Abril de 1974. Esse privilégio foi e é meu, só meu, egoisticamente meu.  É muito difícil partilhar o sentimento, a alegria, a esperança, que uma luzinha tinha acendido um ano antes, quando, no Regimento da minha cidade, fui "dactilógrafo", ao fim de semana, dos escritos do meu comandante de companhia. Mas, como dizia o outro (ou seria a outra?), isso agora não vem ao caso. Surgiu a talhe de foice e serve apenas para deixar claro que foi esse dia inesquecível, em que "festejei" os meus 22 anos, que evitou a minha ida para a guerra ... ou para outro lado.

A morte de Marcelino da Mata que, ao que parece, é o militar mais condecorado das Forças Armadas, desencadeou escritos, opiniões, artigos, entrevistas, conversas de gente de todos os quadrantes, muita dela sem qualquer autoridade e conhecimento para falar sobre assunto tão melindroso e tão sensível. 

A guerra colonial não é assunto tabu. Pode e deve ser discutido, analisado e compreendido por todos, sem borrachas ou parênteses, todavia apenas no âmbito global, por respeito a todos os que por lá passaram, de um lado e do outro. Os exércitos em confronto eram constituídos por pessoas, que faziam parte de equipas e raramente estavam sós. A atribuição de actos a pessoas concretas e a recordação deles, com pormenores e alguns "pormaiores", pode criar, e cria, problemas à memória de todos os que, contrariados, obrigados ou até voluntariados, por lá passaram durante dois anos (às vezes mais), sem telemóvel, sem internet, sem qualquer contacto com a família e os amigos que não fossem as "epístolas" escritas nos aerogramas, conhecidos como "bate-estradas". 

Ainda há, felizmente, muita gente viva que deu tiros e sofreu emboscadas, rebentou minas ou colocou-as, que talvez tenha matado para não morrer, que cumpriu ordens ou foi obrigada, que contestou ou se submeteu, que desertou ou aguentou até ao fim. Essa gente, anónima, não merece nem precisa de ver e ouvir desenterrar um passado que não se pode nem se deve apagar, mas do qual se dispensa a individualização e muito menos a criminalização. Muitos houve que por lá ficaram, sem direito, sequer, a voltarem às suas origens e com a homenagem, apenas, dos seus camaradas.

Tenho amigos e familiares que, tantos anos passados, ainda preferem o silêncio ao comentário sobre o que sofreram, o que fizeram, o que viveram, o que sentiram e os sonhos que, por vezes, ainda os acordam. Muitos, a grande maioria, saiu do país pela primeira vez, no Santa Maria ou no Niassa, no Príncipe Perfeito ou no Infante D. Henrique, depois de cerca de seis meses de instrução duríssima, durante os quais estava sempre presente o aviso de que o objectivo era rumar a dois anos de "degredo", com "bilhete" garantido de ida e com grandes dúvidas sobre a volta.

Meninos, não brinquem com coisas sérias! No próximo século, a história se encarregará de nomear os "Vasco da Gama", os "Gil Eanes" e os "Afonso de Albuquerque". Por agora, deixem-nos ficar sossegados. Não é preciso activar memórias, que estão frescas em todos os que viveram esses tempos.

1 comentário:

casulo disse...

oh bolas, ainda não é hoje que sei exactamente "onde estavas no 25 de abril", como perguntava o Carlos :)