sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Escrita de ouro, que exige redobrada atenção e ... dicionário à mão.

(...) Hipólita herdara bem aquele orgulho da humildade, que se repercutia em toda a sua corte de caseiras e mulheres de recados para quem uma blusa nova era má recomendação, a não ser que se tratasse de festa pascal ou dia de noivado. No Domingo de Páscoa, Hipólita contemplava as suas afilhadas, que eram numerosas, com cortes de chita para que elas próprias executassem blusas, e não esquecia nunca de elogiar o feio resultado, uma espécie de camisões floridos copiados de modas antiquadas.

É certo que em casas como a de Arnaldo Conceição, por exemplo, ninguém se vestia por padrões modernos; e quando suas tias, ainda mulheres novas, apareciam na missa, parecia que o circo estava na aldeia, tanto elas se mostravam completamente ridículas com os seus "corsages" de Verão de organdi com fitas de veludo preto e que tinham sido elegantes quarenta anos atrás. Mas mesmo Rosamaria tinha com ela essa desenvoltura patronal que convida a imitar o que se tem por virtude, incluindo o que a virtude tem de belicoso. As coisas só eram um pouco diferentes com o ramo da família que se aparentara com estrangeiros, com o conde de Wiesel mais exactamente, e que produzira uma geração de gente elegante, "blasée", como Camila Wiesel e César, e Alice, todos estranhos às origens da Casa de Cales. Tinham propriedades bastante importantes que conservavam por uma espécie de humor veneziano ou florentino e que mantinham a peso de ouro. Esses Wiesel eram vistos como exemplo de desordem, mas, ao todo, concediam-lhes um mérito heráldico substancial, porque todo o grande nome tem necessidade da sua excentricidade e mesmo da sua mancha, para assegurar a grandeza que nem só a boa reputação fomenta.

Não se sabe até que ponto a pomposa honestidade dos Alba Pereira se tornou para José uma causa de íntima exasperação. Quando Rosamaria lhe escrevia (cartas que ele adivinhava serem ditadas por qualquer dos amigos comuns, dissidentes da primeira aura política), ele sentia uma extraordinária revolta. Como se uma espécie de traição fosse visível naquele estilo epistolar um pouco balofo e, sobretudo, desusado em Rosamaria. Parecia que ela compunha aquelas cartas como se fosse música sinfónica, orquestrando uma peça musical para um número certo de violas e contrabaixos.

- Para que me escreve ela? - perguntava José, irado. - Parece uma carpideira que deixa à porta da câmara-ardente os sapatos e o coração.

Os meninos de ouro
Agustina Bessa-Luís
Relógio d'Água 

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