quinta-feira, 13 de abril de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Fui dar à taberna daquele a quem chamavam Chocolatinho, incerto sobre se progredia na minha demanda ou para onde poderia ir agora. Estava um daqueles dias de outono desolados e desprovidos de luz, e voltei a encontrar uma certa recompensa naquela animação.

Miúdos de doze anos bebiam cerveja pela garrafa, todos vestidos como jovens gangsters - ou talvez rappers -, e velhos de chinelos sujos faziam a algazarra habitual em torno das mesas de fórmica. Um televisor moderno, demasiado grande para o espaço que ocupava, debitava as notícias dos últimos crimes em locais do país que nenhuma daquelas pessoas alguma vez conheceria. O proprietário recebia os clientes com a máscara no queixo, lançando perdigotos em volta, de cada vez que alguém conseguia arrancar-lhe uma palavra - mas, ao mesmo tempo, era como se em tudo aquilo houvesse uma espécie de harmonia, até de comunhão.

- Pode fumar, que aqui toda a gente fuma - disse-me, extraindo um cinzeiro de baixo do balcão e depondo-o sobre o tampo, com a mão colossal e endurecida. Mais uma?

E eu percebi que me tratava com a deferência dos que se empenham em recuperar a sua melhor linguagem porque, por uma vez, encontraram alguém capaz de a decifrar.

Talvez fosse ele o traficante daquele bairro, sim. Ninguém estaria em melhor posição para o ser, e em todo o caso quem desempenhasse esse papel não poderia fazê-lo sem a sua cumplicidade. Mas, afinal, não poderia ser pior, a sorte daquele gente? Um capo assim, com o seu negócio legítimo e os seus esforços para manter a ordem - talvez pudesse ser até mais conciliador do que uma autoridade.

O pior do crime organizado era quando ele se desorganizava. Isso, sim, podia levar a que se estilhaçasse tudo - e de uma maneira irreversível.

Bebi mais uma cerveja, sentindo um rubor aflorar-me às faces, e apaguei o cigarro no cinzeiro que o dito Chocolatinho me fornecera. Mulheres entravam e saíam, para um café e uma bisbilhotice, e a cada uma delas algum dos homens lançava um piropo surdo mas intencional, aliás nem sempre rechaçado.

O televisor falava de um acidente de automóvel na Beira Alta e os garotos que bebiam contavam as moedas, a conferir se poderiam pedir mais uma também. Olhei através da porta aberta, certificando-me de que a chuva voltara a recolher-se, e saí. (...)"

Jénifer, ou a princesa da França
Joel Neto
Retratos da Fundação
Fundação Francisco Manuel dos Santos (2023)

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