A porta já tinha sido fechada há algum tempo e o último cliente já se fora.
Viviam-se os momentos, poucos, de descontracção diária, antes de se iniciarem as tarefas do fecho do dia. Estes momentos eram aproveitados para contar a última anedota,
- Já sabem a última?
comentar o último jogo do Benfica,
- Não jogaram nada ... dizia um,
- É o costume, concluía outro.
contar, em grupo mais reservado e para que as colegas não ouvissem, a última separação conhecida,
- Parece que foi ela que saiu. Estava farta dele.
De repente, alguém exclama, num grito que tinha tanto de exaltado como de medroso:
- Olha ali, naquela escrivaninha?!
- É um embrulho ...
- Vê lá se é uma bomba!?
Do lado de fora do balcão, fixadas à parede, existiam três ou quatro prateleiras de madeira, pequenas, que eram utilizadas pelos clientes para preencherem os cheques, talões de depósitos e outros documentos. Nesse tempo tudo se fazia "à mão" e preencher o documento antes de o entregar era sinal de sapiência e de disposição para colaborar e ser atendido de forma mais rápida. Muitos havia a quem era necessário preencher tudo e, no local reservado à assinatura, escrever "A rogo de F., por não saber assinar", com a rubrica de dois empregados e a impressão digital do indicador direito do cliente, cuja recolha tinha a sua ciência e nem todos conseguiam com o rigor necessário que a inspecção, mais tarde, iria averiguar. Pré-história!
Voltemos ao embrulho: viviam-se tempos complicados, havia atentados bombistas, não muitos mas alguns foram notícia, a luta de classes estava ao rubro, os partidos clamavam as suas verdades com veemência, comentavam-se hipóteses de golpes de estado, confrontos entre militares, enfim, condições criadas para se especular sobre tudo e para uma vivência com alguma ansiedade.
- Eu vou lá ver, gritou o V.E., destemido e ainda cheio de episódios da guerra colonial na Guiné, cuja dureza era de todos conhecida e dele, em particular, por ter lá permanecido mais de dois anos e sempre "em zona 100%", como não se cansava de repetir.
E, se bem o disse, depressa o fez.
Chegado à escrivaninha, estacou e murmurou, em tom rouco e reservado, mas perfeitamente audível dado o silêncio instalado.
- Faz tique-taque.
Recuou.
- Tome cuidado, V.E., ouviu-se do gabinete.
Funcionou como incentivo. Determinado, avançou para o embrulho, puxou do canivete que sempre o acompanhava, cortou o cordão, rasgou o papel, pardo, e abriu a caixa.
Exibiu o achado bem alto, para todos apreciarem.
Era um enorme despertador, novinho em folha, azul celeste, que deveria ter sido adquirido nesse dia numa das várias ourivesarias existentes na cidade. Guardou-o na casa forte e, como todos os outros, dedicou-se ao fecho do dia, que já eram bem horas.
A campainha da porta tocou.
- O que quer este a esta hora? Já estamos fechados há que tempos.
- Vai lá, mas não abras a porta.
A porta, de ferro, tinha uma janela que era possível abrir, deixando as grades a garantirem a segurança.
Não se ouviu nada do diálogo, mas o "porteiro", contrariando as ordens, abriu a porta e deixou o cliente entrar.
- Ó V.E., é o dono do relógio!
- Agora tem de esperar, que a casa forte demora cinco minutos a abrir!
1 comentário:
És uma bomba a escrever! Deste conto, vivido na casa dos contos de reis, gostei.
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