sábado, 20 de junho de 2020

Quotidiano

Telemóvel numa mão, um pequeno saco na outra, vestido comprido, branco, a companhia de alguém, família ou amiga, que mais parece sua serviçal.
Retira o vestido, branco, e surgem três ou quatro tatuagens, nas pernas e nos braços, vistosas, coloridas, e um biquini, não branco, vermelho forte.
Acciona o telemóvel em direcção ao mar, fotografa ou filma, enquadrando o poiso. Uns saltinhos a caminho da água, a companheira atrás, que fria, retira o pé, faz marcha-atrás, vira as costas ao azul esverdeado e à calmaria que o mar hoje nos entregava. 
O mar convida a entrar, calmo, bandeira verde, coisa estranha, sem as ondas do costume e com um sol radioso, sem nuvens nem nevoeiro nem sequer a nortada costumeira.
A mão disponível não larga o telemóvel. Ajeita o cabelo, faz pose, alisa o cabelo, faz pose, alinda-se , sorri, faz boquinhas, trejeitos, dobra-se, ergue-se, e o dedo frenético fixa o registo, para a posteridade, dos momentos "inesquecíveis".
Chama a companheira, dá-lhe o telefone e principia o desfile. Um passo para a frente, tomba a cabeça, segura o cabelo, levanta a perna, finge entrar no mar, mãos para cima, agora na cintura, espreita o mar, vira-lhe as costas, mexe na areia, segura os joelhos, agora a anca, mais uma volta, mais um pulinho, água não, só a fingir, e o mar espreita, tranquilo, esperando que a sereia entre.
Não entrou, mas as fotos hão-de ser "postadas" e registarem, para a posteridade, que foi uma grande manhã de praia ... sem banho. C'os diabos, a água está tão fria ... nem sei como é que aguentam!

1 comentário:

Anónimo disse...

Grande manhã de praia teve, também, o autor desta reportagem. Só me refiro à qualidade do belo texto produzido, claro.