quinta-feira, 4 de junho de 2020

Caça

Voltava quase todos os dias.
Alquebrado, com visíveis dificuldades de locomoção, uns óculos, com uma haste partida, na ponta do nariz, ofegante, a espingarda a tiracolo, na mão esquerda uma bengala de madeira castanha que já deveria ter servido a um seu antepassado, os sapatos cambados, calças de cotim, camisa branca e um colete preto, com costas de cetim cinzento, de cujo bolso esquerdo saía a corrente de prata do velho relógio que lhe administrava o tempo. 
Atravessava o jardim, cumprimentava quem lhe surgia fazendo apenas o gesto de tirar o boné e ciciava
- Bom dia
seguindo o seu destino. Dizia-se que, no dia do casamento, teria dito à mulher, numa voz muito suave e de fraco volume
- Não gostava que alguém, nesta casa, falasse mais alto do que eu.
Nunca se lhe ouvia justificação para a vinda nem o que pretendia fazer, mas todos sabiam o destino e o objectivo.
Em marcha lenta, passava as árvores grandes que delimitavam o jardim e encostava-se ao muro que vedava o pomar. Ia andando, encostado e curvado e, daí a pouco, ouvia-se um tiro. Nunca demorava muito tempo e o regresso era feito pelo mesmo caminho.
- Já levo almoço, ciciava.
E mostrava, quase sempre um coelho, por vezes uma perdiz, mais raramente uma galinhola.
Para ele não havia época de caça. Tinha sido feitor na casa, um problema de saúde diminuíra-lhe muito as capacidades e desistira. Todos o respeitavam e ninguém lhe chamava a atenção para a ilegalidade cometida. A venatória não tentava sequer lá entrar, mesmo que, por um acaso, ouvisse o tiro.
Um dia, há sempre um dia, acabaram-se os tiros e, anos passados, os coelhos, as perdizes, as galinholas e tantos outros também deixaram de por lá aparecer.
 

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