segunda-feira, 1 de junho de 2020

Licença de isqueiro

Tinha prometido a si próprio que iria conhecer Lisboa antes de fazer quarenta anos e já ia nos trinta e nove.
Nas últimas semanas o trabalho havia corrido bem, tinha recebido umas massas de uns calotes já caídos no esquecimento, havia umas encomendas boas de barris novos - era tanoeiro -, era chegada a altura. Ainda por cima, as eleições do Delgado já tinham sido há um ano e a grande cidade devia estar calma. 
Foi à estação saber a que horas havia comboio e, no dia seguinte, sexta-feira, apanhou o dito, pouco passava das seis da matina. O comboio já vinha do norte, mas trazia muitos lugares vagos. Ainda a máquina vinha longe e já se ouvia o barulho, imenso, e se via um fumo negro que metia respeito. Sentou-se, sem cerimónia, num banco enorme só para si.
O homem da estação apitou e, de esticão em esticão, o "bicho" ganhou velocidade tal, que nem distinguia os sítios por onde estava a passar. Por pouco tempo: primeira paragem em Óbidos, depois Dagorda-Peniche, São Mamede, Paul e Bombarral. Até aqui conhecia ele bem, sem ser preciso ler os nomes das estações e apeadeiros. A viagem prosseguia e redobrou a sua atenção aos nomes, novos para si, que iam surgindo: Outeiro, Ramalhal, Torres Vedras, Runa, Dois Portos, Feliteira, Zibreira, Pero Negro, Sapataria, Jerumelo, Malveira, Mafra, Sabugo, Meleças, Agualva-Cacém. Em quase todas as paragens entrou gente mas, na última, o pessoal ocupou todos os bancos e alguns ficaram de pé.
Sentia-se apertado, curioso e nervoso. A partir daqui o comboio só voltou a parar no Rossio, depois de ter passado pela escuridão de um túnel enorme.
Eram quase onze horas e a "bucha" da manhã ainda não tinha chegado ao seu estômago necessitado. 
Toda a gente saiu do comboio a correr, via-se que tinham pressa, mas ele não. Calmamente, tentando esconder a surpresa que tudo lhe causava, desceu as escadas da estação e, chegado à rua, deu de caras com uma tasca.
- É já aqui, antes que a fome e a sede me façam desmaiar, disse alto para se ouvir e acreditar.
- Bom dia. Então o que vai ser?, perguntou o homem do balcão, com  o palito na boca e o pano, sujo, no ombro.
- Dois pastelinhos de bacalhau e um copinho de branco, bom.
Saiu reconfortado. 
Puxou da onça de tabaco e da mortalha, enrolou calmamente um cigarro, tirou o isqueiro do bolso e acendeu-o.
- Tem licença?
Era para ele que o polícia falava.
- Licença de quê? 
- Do isqueiro, respondeu o cívico. É preciso. Se não tem, vou autuá-lo e o isqueiro reverte a favor do Estado. 
Amedrontado, soube o valor da multa, pagou e voltou à tasca comprar fósforos.
Apreciou o Rossio, a Igreja de S. Domingos, a fachada do Teatro D. Maria II, viu o castelo lá no alto e seguiu, rua abaixo, até ao rio. Antes de lá chegar, deteve-se a apreciar a beleza das arcadas da Praça do Comércio e confirmou que a pata direita do cavalo de D. José é a esquerda.
Demorou-se junto ao rio, deliciou-se com a paisagem da outra banda e foi-se encaminhando para norte.
O vinho branco é diurético e a vontade apertava.
Já no Campo das Cebolas, procurou um recanto e cá vai disto ...
Um polícia bateu-lhe no ombro.
- Não tem vergonha? Está autuado!
Encolheu-se todo, perguntou quanto era a multa, meteu a mão ao bolso e deu a nota ao guarda. 
O polícia, espantado com aquele comportamento, perguntou:
- Meto-lhe medo ou cheiro mal?
- Não, senhor guarda, não é nada disso. É que, há bocado, um colega seu multou-me e ficou com o meu isqueiro e eu estou com medo que agora aconteça o mesmo. O instrumento faz-me falta. 
 

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