domingo, 27 de março de 2022

Dia Mundial do Teatro

Por que vio as ruas de Lisboa com tão poucos ramos nas tavernas e o vinho tão caro, e ella não podia viver sem elle

Eu só quero prantear
este mal que a muitos toca
Que estou já como minhoca 
Que puseram a secar. 

Triste desaventurada,
que tão alta está a canada 
para mim como as estrelas; 
Ó coitadas das goelas! 
Ó goelas da coitada!

Triste desdentada escura 
quem me trouxe a tais mazelas?
Ó gengivas e arnelas
deitai babas de securas.

Carpi-vos, beiços coitados
que já lá vão meus toucados.
E a cinta e a fraldilha;
Ontem bebi a mantilha,
que me custou dois cruzados. (...)

Pranto de Maria Parda
Gil Vicente

Foi há muitos anos (agora já tudo foi há muito tempo), não me lembro quantos mas recordo as circunstâncias quase como se tivesse sido hoje ou talvez melhor!

Um curso profissional prolongado obrigou-me a estar em Lisboa, semana sim, semana não, durante vários meses e isso permitia-me, à noite, usufruir de alguns espectáculos que iam tendo lugar na capital, da cultura e do país. Numa dessas noites - o trabalho era só de dia - fui até Santos ver Maria do Céu Guerra interpretar o Pranto de Maria Parda no antigo cinema Cinearte, convertido, em boa hora, em sala de espectáculos do Teatro A Barraca.

O cinema Cinearte estava presente na minha memória desde os anos sessenta do século passado. Conheci, nesse tempo, um homem bom, a quem chamávamos Ti Neca, que ali tinha sido projeccionista. Contava aventuras fabulosas que por lá tinha vivido e presenciado. Assisti à sua partida e arquivei o contado na gaveta, profunda, da memória.

A sala do Cinearte estava cheia e, quando as luzes iluminaram o palco, surgiu uma "velha", andrajosa, encolhida, com um cajado numa das mãos e na outra uma garrafa de vidro, verde-garrafa, que levava à boca com a regularidade que o texto permitia e exigia.

A bêbeda era interpretada de forma soberba e o texto dito na perfeição, não escapando nenhuma sílaba, apesar do entaramelado maravilhoso da voz de quem "bebeu" demasiado. Nunca mais esqueci a "bêbeda" de Maria do Céu Guerra e isso "obrigou-me" a segui-la em quase todos os espectáculos que levou à cena naquela sala e em algumas outras. Nunca me arrependi!

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