quinta-feira, 10 de março de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) Velho como sou e mais precavido do que qualquer pardal ou abelharuco, não me entusiasmei com a breve trégua do mau tempo. Nem sequer fui ver as estrelas ontem à noite, desconfiado de que o vento que principiava s soprar da serra havia de trazer nuvens escuras e novas bátegas. Deixei-me ficar a dormir sonhos estranhos e a tossir uma bronquite que creio poder atribuir à chuva das semanas anteriores e ao facto de não ter tirado as botas molhadas quando, um destes dias, cheguei a casa para comer foie gras e requeijão de cabra, e sobretudo para beber vinho tinto, que é a melhor forma de esquecer que lá fora há um mundo de coisas inóspitas e com má cara: a chuva, o vento, os governos fascistas, as doenças novas, a ignorância e as raparigas que não sorriem.

Alba seria capaz de interromper este Inverno com uma simples gargalhada.

Diria decerto que lhe faço lembrar, nas minhas deambulações pela vila, o velho actor careca que, na capital, costumava passar sob a nossa varanda no decurso das suas caminhadas matinais. Rir-se-ia ao imaginar que também eu pudesse percorrer as ruas por prescrição médica, usando um fato-de-treino antiquado e sapatilhas de desporto, passeando sem pudor um nariz de abutre e os fiapos do cabelo que me tivesse sobrado na nuca. Eu sorriria também, sinceramente divertido com a possibilidade de me ver transformado num caminhante calvo como um ovo e capaz de procurar compensar a careca deixando crescer os sobejos do cabelo muito para além do razoável. Esqueces que sou professor de Estética, dir-lhe-ia, e que o ridículo é uma forma de arte que nunca me interessou. Também és escritor e não escreves, responderia Alba. (...)

A última curva do caminho
Manuel Jorge Marmelo
Porto Editora (2022)

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