sábado, 9 de abril de 2022

Conversas ... da treta

Lá no reino dos céus ou dos infernos, ninguém sabe ao certo, consta que entabularam conversa dois seres, assim designados para facilitar, bem diferentes entre si mas conviventes em variadíssimas situações da vida de ambos.

A tábua, ufana, preconceituosa, convencida, transmite o seu esplendor e arrogância, passeando o seu brilho já fosco, enquanto discursa para a geral, ainda que só esteja presente um ouvinte.

- Fui fundamental. Sem mim não haveria beleza nas casas e nos escritórios. As salas ficariam sem brilho, os móveis não teriam graça. Nada pode substituir a madeira, pintada, envernizada, ou simplesmente virgem.

O escadote, cabisbaixo, encostado ao canto da parede, aguardava serenamente a possibilidade de alguém ainda dele precisar. Não era provável, mas se acontecesse, ali estaria ele, meio trôpego, mas disponível. Pouco dado a familiaridades, não lhe apetecia muito fomentar a conversa, tendo a certeza de que a estultícia da tábua o arrastaria sempre para a mó de baixo, lembrando-lhe a sua pouca utilidade, a sua vocação para ser espezinhado e sujo, destinado a permanecer no vão das arrumações sem que um pano, sim, um simples pano, lhe limpasse os pingos da tinta, os restos de cimento, enfim, as marcas do trabalho duro. 

- Ao contrário de ti, tábua, eu tinha sempre utilidade embora, reconheço, ninguém me elogiasse. Sem mim, o que seria dos móveis altos, dos aros das portas, dos candeeiros de tecto e das limpezas dos mesmos, da mosca à pontinha de humidade que por vezes aparece lá mesmo em cima, no sítio onde ninguém chega sem mim. E sabes porque vim aqui parar?

Tive um tremelique, acontece aos melhores. Os pés do utilizador baralharam-se, as leis do Newton estiveram presentes e o que parecia impossível, aconteceu.

A tábua, ciente de que o seu protagonismo não poderia ser manchado por um qualquer escadote, ainda por cima sujo e muito usado, para não dizer velho, retorquiu:

- Comigo foi diferente, claro. Alguém, pouco sensato, deixou-me no passeio, talvez para embelezar a calçada. Os pés (ainda) não têm olhos, a elasticidade dos adultos mais maduros já vai rareando, o "desastre" aconteceu. Resultado: fui parar ao lixo, não ao da reciclagem que me cabia por direito, mas ao normal. Por ali fiquei, misturada com todas as porcarias, eu, vê tu, que sempre fui tão caprichosa e tão ciosa do meu espaço, limpo e agradável.

A conversa ficou por ali. Cada um foi para o seu canto meditar na função que desempenharam enquanto se revelaram úteis. Agora eram ambos coisas sem qualquer préstimo, por mais que se esforçassem ...

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