quarta-feira, 13 de abril de 2022

"Os cadernos e os dias"

Gonçalo M. Tavares é um escritor que faz parte de um núcleo, reduzido, de gente das letras, bem mais nova do que eu, que muito aprecio e procuro ler com regularidade. Nesta regularidade está incluída a crónica semanal por ele publicada na revista do Expresso, que sempre me abre horizontes, me desperta para curiosidades, me chama a atenção para evidências que, de outra forma, talvez passassem despercebidas, me extasia e causa inveja, pela qualidade dos pensamentos e pela forma como são expostos.

O Expresso sai, de novo, já amanhã - o tempo passa a correr - e a leitura da revista da semana passada só hoje foi concluída. E é lá que se podem ler estas preciosidades, aguçando o apetite para o que virá a seguir.

(...)
3. A palavra "antigo" tem então, hoje, bem menos tempo lá dentro. Em 2022, ao fim do dia, uma notícia da manhã é uma notícia antiga. Eis o que todos sabemos.
Em termos de informação, um dia torna-se antigo ao ritmo dos minutos e nunca das horas, as vinte e quatro, que o calendário estipula - e esta aceleração da informação não deixa que os humanos se escondam.
(...)
8. No século das montras. Eis onde estamos. É preciso uma montra e luz que incida nela. Quem não está exposto atrás de um vidro ou quem está no escuro, está - por exclusão de partes - numa passadeira rolante, alistado no pacífico exército dos consumistas. Podemos rodar por estes três espaços, mas pouco mais. Podemos pensar que não é assim, mas de facto não caminhamos de uma montra para a outra em cima, afinal, de uma passadeira rolante. Mudamos de sítio, ou seja, de produto à nossa frente, sem esforço algum. Quer estejamos no espaço físico, lá fora, quer estejamos sentadíssimos diante do ecrã. 
Os quietos e os preguiçosos há muito que não são excluídos do reino do consumo. São demasiados para serem ignorados.
9. Sejamos claros, amigo Jonathan. Um ser vivo fica obsoleto quando se torna inútil e torna-se inútil quando não consome. 
A inutilidade já não é a incapacidade para produzir - inútil já não é quem não trabalha. Há muito o centro passou das mãos que fazem para as mãos que anseiam.
Aqui continuamos. Mais estúpidos, sim, mas ainda com dez dedos.

Gonçalo M. Tavares
Os cadernos e os dias
Jornal Expresso (08.04.2022)

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