segunda-feira, 4 de abril de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Morreu ontem, com 98 anos, a escritora brasileira Lygia Fagundes Telles. Na estante cá de casa há quatro livros comprados e lidos já há alguns bons anos. Peguei num deles, abri e resolvi deixar por aqui este pequeno excerto, em memória da "grande dama da literatura brasileira".

"(...) Ana Clara fazendo amor. Lião fazendo comício. Mãezinha fazendo análise. As freirinhas fazendo doce, sinto daqui o cheiro quente de doce de abóbora. Faço filosofia. Ser ou estar. Não, não é ser ou não ser, essa já existe, não confundir com a minha que acabei de inventar agora. Originalíssima. Se eu sou, não estou porque para que eu seja é preciso que eu não esteja. Mas não esteja onde? Muito boa a pergunta, não esteja onde. Fora de mim, é lógico. Para que eu seja assim inteira (essencial e essência) é preciso que não esteja em outro lugar senão em mim. Não me desintegro na natureza porque ela me toma e me devolve na íntegra: não há competição mas identificação dos elementos. Apenas isso. Na cidade me desintegro porque na cidade eu não sou, eu estou: estou competindo e como dentro das regras do jogo (milhares de regras) preciso competir bem, tenho consequentemente de estar bem para competir o melhor possível. Para competir o melhor possível acabo sacrificando o ser (próprio ou alheio, o que vem a dar no mesmo). Ora, se sacrifico o ser para apenas estar, acabo me desintegrando (essencial e essência) até a pulverização total. Vaidade das vaidades. Apenas vaidade. A conclusão é bíblica mas responde a todas as perguntas deste mundo desintegrado e confuso. Os loucos reinando sobre os vivos e os mortos. Dominarão os poucos que conseguirem segurar as rédeas da loucura, quais? Pulmões e mentes poluídas. (...)"

As meninas
Lygia Fagundes Telles
Editorial Presença (2005)

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