segunda-feira, 22 de maio de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...)Morriam as pessoas, morria a aldeia, morriam as memórias, os costumes e a história de uma aldeia, de um pequeno mundo que toda a vida fora dele. Sentia, por isso, ser seu dever fazer alguma coisa. E, já que não podia evitar aquelas mortes - as mortes dos que lhe eram queridos -, lembrou-se de fazer renascer a aldeia com outras pessoas. Não seria a mesma coisa, mas não era isso que acontecia a todos os lugares? E, se os que ali habitavam não tinham já idade para procriar, ele traria para aquele lugar quem estivesse ainda em condições de o fazer.

Primeirissimamente, havia que criar condições para as pessoas ali viverem, condições que atraíssem gente nova. E tal empreendimento passava por fazer de uma aldeia em ruínas uma aldeia habitável, hercúlea tarefa para um homem só. No entanto, porque sentia que lhe tinha sido confiada uma missão de importância capital para o mundo - para o mundo dele, para o mundo que conhecia -, deslocou-se Baiôa à sede do município por quatro vezes: a primeira, para falar com quem mandava, mas que só lhe serviu para ficar a saber como poderia tentar falar com quem mandava; a segunda, para devolver o requerimento de audiência; a terceira, dois meses e meio depois, para falar com o adjunto do vereador; a quarta e última vez, para levantar um documento, assinado pelo presidente da Câmara, no qual este declarava que, por entender o valor da empreitada a que o cidadão supranomeado se propunha, merecia da autarquia e dele próprio, enquanto respectivo governante, o maior dos apreços, desde logo por não possuir a autarquia verbas - tão pequena era a dotação que recebia do erário público - para ela própria executar tão necessários trabalhos, atribuindo-lhe pois um alvará provisório para a realização das obras de construção civil, e isentando-o de todas as burocracias e formalismos necessários à execução de trabalhos de conservação e de reconstrução, no âmbito do disposto no Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, considerando-se assim devidamente instruído e comunicado o aviso de início dos trabalhos em todas as edificações dentro do perímetro urbano de Gorda-e-Feia, desde que cumprido nos referidos trabalhos um conjunto básico de normas previstas pelo Regime Geral das Edificações Urbanas e simplificadas pelo Regime Excecional de Reabilitação Urbana, nas redações então em vigor, tais como as respeitantes às fachadas e à volumetria das edificações, bem como todas as demais regras para intervenções consideradas de escassa relevância urbanística e identificáveis nos documentos em anexo, um conjunto de textos legais eficientemente sublinhados a marcador amarelo fluorescente, que tive oportunidade de ler e de ajudar Baiôa a reanalisar numa longa tarde de chuva, etc. (...)"

Baiôa sem data para morrer
Rui Couceiro
Porto Editora (2022)

1 comentário:

Anónimo disse...

Um livro excelente, que também aconselho.