domingo, 31 de maio de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

O último evento público em que Luís Sepúlveda participou foi o Festival Literário Correntes d'Escritas de 2020, realizado em Fevereiro deste ano.
No regresso a Espanha, o escritor foi hospitalizado e viria a morrer em 16 de Abril passado, vítima do malfadado Covid-19.
Depositei hoje no saco dos lidos, porque me foi emprestado pelo meu amigo ADS, um pequeno livro de crónicas, editado em Portugal em 2010, onde uma delas é dedicada ao Correntes.

O verdadeiro autor de Tarzan
Há algo que toda a vida agradecerei às Correntes D'Escritas, um esplêndido festival literário que se realiza todos os meses de Fevereiro na Póvoa do Varzim: ter-me dado a conhecer estupendas e estupendos escritores de Angola, Moçambique e Cabo Verde. Antes de ter ido à Póvoa pela primeira vez, perdera essa grande literatura, os livros de Germano Almeida, Manuel Rui, Ondjaki e Nelson Saúte.
Deste último posso dizer que, em certa ocasião, visitámos juntos uma escola da Póvoa de Varzim e não sabíamos de que falar aos alunos. Para encontrar um tema comecei por dizer que estava muito contente porque a camisa que usava naquele momento tinha sido um presente de Nelson e viera directamente de Angola. Era uma linda camisa que ressumava africanidade, e isto deu uma oportunidade a Nelson, que começou a contar uma aventura na savana africana com ataques de ferozes pigmeus, missionários enlouquecidos por febres apocalípticas, lutas com leões famintos e indignados com a Metro Goldwyn Mayer, combates com elefantes de moral duvidosa, pelejas a murro com gorilas de hábitos sexuais confusos, até que chegou ao sítio onde vendiam as camisas, comprou uma, e regressou no meio de aventuras ainda piores.
Ouvi-o tão hipnotizado e perplexo como os alunos daquela escola, e concluí que o autor de Tarzan não se chama Edgar Rice Burroughs, mas Nelson Saúte, esse grande escritor que me compra camisas em Angola.

Numa outra crónica do mesmo livro - Quem é você - Sepúlveda, que se considerava também jornalista, discorre sobre esta profissão tão antiga e tão necessária mas que, nos últimos anos, tem perdido muita da sua objectividade e clareza, mais parecendo um "guisado" sem qualquer condimento, desenxabido e intragável.

(...) coube-me acompanhar Ryszard Kapuscinski, o Mestre dos mestres, quando recebeu o prémio Príncipe das Astúrias de Comunicação. Enquanto passeávamos por Oviedo, Kapuscinski confessou-me o pânico que sentia sempre que era entrevistado.(...) 
E aí estávamos, numa esplanada, quando se aproximou de nós uma rapariga muito jovem, bastante bonita, e se apresentou como jornalista de um canal de televisão. Pediu uma breve entrevista, dois minutos, disse, em suma, é para a televisão, acrescentou, e em seguida sacou de um pequeno espelho e compôs a maquilhagem, enquanto um colega dela assestava a câmara e outro ainda preparava o microfone para o entrevistado.
- Quem é o importante? - consultou o técnico.
A pergunta interrompeu a tarefa embelezadora da jornalista. Era, sem dúvida, uma boa pergunta,(...)
- Quem é o premiado? - perguntou, e, então, Ryszard Kapuscinski apontou para mim com um dedo acusador.
Deixei que me pusessem o microfone, o homem da câmara mostrou os dedos, quatro, três, dois, um, e a jornalista começou a entrevista, breve, em suma, é para a televisão.
- Quem é você e porque o premiaram?
Uma pergunta dupla merece uma resposta meditada, de modo que me apresentei como um escritor lituano, autor de um romance cujo argumento resumi: um homem sofre muitas traições, vai parar à cadeia, passa vários anos nas piores condições, foge, e como não esquece nem perdoa a quem o ofendeu, consagra a vida à vingança.
A jovem jornalista despediu-se, nem por um só momento se preocupou com o olhar atónito de Kapuscinski e o mais certo é que essa entrevista tenha sido vista por muita gente que tem o direito de ser responsavelmente informada, mas esse direito está em perigo, pois a precariedade em que caiu o jornalismo faz com que ninguém seja responsável pelo que se escreve, diz ou emite, salvo raras excepções, e com que sejam poucos os jornais feitos por jornalistas que, com absoluto rigor, assistem ao funeral de uma profissão tão bela quanto necessária.(...)

Histórias daqui e dali
Luís Sepúlveda
Porto Editora (2010)

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