sábado, 3 de dezembro de 2022

Memória

Comecei a ler muito cedo, bem antes da entrada na escola primária, como então se chamava à que, actualmente, surge após o jardim de infância, na altura ainda inexistente. A minha irmã, nascida três anos antes, foi a grande responsável, despertando em mim o gosto pela descoberta e a sensação, estranha mas intensa, de perceber a junção das letras, os sons que daí resultavam, a imensidão de coisas novas que era possível aprender. O Jornal de Notícias que o meu pai trazia, com frequência quase diária, das suas viagens ao Porto, fez o resto. Lembro-me de o ler (talvez soletrar)  de joelhos, na cozinha, e de a minha mãe, nas suas deambulações de labuta doméstica, muitas vezes lhe passar por cima, sem ter o cuidado que o "leitor" achava ser imprescindível ter para aquele papel enorme, que trazia "tudo" o que era desconhecido e ia acontecendo pelo país e pelo mundo e, ainda por cima, sujava as mãos de tinta negra.

Os livros vieram bem mais tarde, com a escola, depois com a Biblioteca itinerante da Gulbenkian, onde um senhor, alto, cujo nome já não recordo, escolhia os livros que eu devia ler e entregou nas minhas mãos, depois de todo o Júlio Dinis, de dois ou três do Camilo, e vários do Eça, desde O Primo Basílio aos Maias, passando pelo Crime do Padre Amaro, um exemplar de A Relíquia, retirado da prateleira lá do fundo e com uma cinta vermelha à volta.

- Já podes ler, mas evita mostrar.

Depois, ainda da Gulbenkian, a Biblioteca fixa do Parque, com a senhora, simpática, a fazer crochet na secretária e a interrompê-lo para anotar os livros trazidos depois de "assentar" os que tinham sido entregues e confirmavam o "saldo" zero. As bibliotecas foram as "livrarias" que frequentei até ir para a tropa. 

O primeiro livro por mim comprado foi "Sábado à noite e Domingo de manhã", de Alan Sillitoe. Mais de meio século passado, ainda se encontra na estante, com uma estória para contar, para além daquela que contém. Foi metido no saco que transportava os, poucos, pertences que me acompanharam no ingresso no serviço militar obrigatório e não passou na revista, rigorosa, que um militar consciente e zeloso nas suas obrigações, fez ao saco logo na entrada, para se perceber claramente quem mandava.

- Um livro? Aqui não há tempo para ler! Ainda por cima subversivo. Fica cá.

- É só um romance. Nada de especial ...

Não adiantou a observação. Foi "arquivado". Só voltou ao dono duas ou três semanas depois, quando a timidez e o medo foram vencidos e alguma convivência com o comandante da companhia - Tenente (na altura) Virgílio Varela, já falecido - me permitiu ter a "lata" de lhe contar o sucedido.

- O "mecerico" vai voltar a ter o livro. Vou tratar disso ...

E tratou. Não faço ideia como o foi descobrir e onde se encontrava, mas regressou ao proprietário.

- O "mecerico" leva-o para casa e não o traz mais. Tenho esperança que os livros deixem, um dia, de ter o rótulo que este apanhou.

Aconteceu daí a pouco mais de um ano, não sem antes o meu comandante de companhia ter sido preso pela participação activa no levantamento do 16 de Março de 1974. 

E queria eu falar de um livro em concreto, que ontem me chegou em mais uma entrega do Clube Tinta da China ...

1 comentário:

Anónimo disse...

Os encantos que as calendas nos despertam!...♥️