segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

Não me desloco muito ao Centro Comercial cá do burgo mas, por vezes, lá acontece. Isso implica sempre uma entrada na Bertrand, única livraria que ainda resta na cidade. Na maioria das vezes, pelo menos um livro salta da prateleira e pede boleia até a casa.

Naquele dia, o objectivo estava definido e dirigi-me logo às prateleiras em busca não do tempo perdido mas do livro pretendido. Olhei, vi, reparei, mirei, nada. A destreza para descortinar qualquer coisa nunca foi famosa e o defeito agrava-se cada vez mais.

- Não se importa de me indicar onde está a Biografia de Luiz Pacheco ...

- Está lá ao fundo, mas eu vou lá consigo.

O colaborador (agora ninguém é empregado ou trabalhador) acompanhou-me, solícito, até ao sítio onde eu já tinha estado.

- Já não há nenhum ...

- Não me diga?!

- Têm-se vendido como pãezinhos quentes, mas ainda tenho no armazém. É só um momento.

Voltou daí a pouco com três ou quatro exemplares e passou-me um deles.

- É este, não é verdade. Temos vendido bem ...

 - Talvez seja por Luiz Pacheco ter vivido nas Caldas em pequeno e ter voltado já bem adulto ... Apanhou por cá algumas pielas.

A admiração foi notória.

- Ah! Então talvez seja por isso. Tenho de o ler.

Não faço ideia se o colaborador da Bertrand já o leu. Por aqui, cerca de um terço das mais de 500 páginas já marchou ...

"(...) A expensas do pai e depois suas, Paulo Pacheco fazia desde jovem temporadas estivais em termas para serenar as convulsões de asmático. Frequentara as de Entre-os-Rios, no Douro, e depois as das Caldas da Rainha, que ficava mais perto de Lisboa, tinha um vetusto e celebrado hospital termal, com águas que haviam granjeado fama de vencer qualquer catarro respiratório. Dispunha para instalação de um requintado hotel, com salão de baile e 120 quartos, o Lisbonense, que só abria na época estival. Demais, entre o hotel e o hospital, desdobrava-se um vasto parque arborizado à inglesa, com um lago voluptuoso onde deslizavam cisnes à beira do qual as senhoras se vinham sentar, de sombrinha na mão, a contemplar o verde das águas. A vila era farta de comidas, com uma tradição barrista antiga e uma fábrica de loiças fundada por Rafael Bordalo Pinheiro. Mal o filho mostrou segurança no andar, logo pensou levá-lo consigo na temporada seguinte para a vila, para o iniciar nos benefícios das águas. Desta vez, em lugar de se instalar com o filho no hotel, preferiu optar por alugar uma parte de casa, de modo a ter apoio nas compras, na comida e no amparo da criança, já que não levava criada. Instalou-se em casa de uma senhora solteira, Eugénia Augusta de Vasconcelos Soeiro de Brito, filha de um coronel do exército, camarada talvez do velho oficial  de infantaria, Luiz Henrique, e que vivia numa vivenda do centro, na Rua General Queirós. Senhora culta, de meia-idade, que escrevia nos jornais, o seu estalão mental não diferia muito das poetisas de almanaque que eram as tias de Paulo Pacheco. Meio, educação e interesses eram idênticos. A senhora cedeu a pai e filho o primeiro andar, ficando ainda com o encargo da roupa e comida de ambos. Solteira, sem filhos e sem afectos, ligou-se à criança que conheceu quase de colo e acabou por ter junto dela um papel de peso. (...)"

O firmamento é negro e não azul
A vida de Luiz Pacheco
António Cândido Franco
Quetzal (2023)

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