quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Voos

Estava poisado num ramo bem alto, camuflado entre a folhagem, densa, do castanheiro. De vez em quando ouvia-se aquele choro lancinante, característico da sua espécie quando em sofrimento. Transmitia dor e desencadeava pena.

Os olhos, experimentados, conduzidos pelo grito bem audível, conseguiram vislumbrar o azul das suas penas, lá bem no cimo da árvore. Era quase impossível que o gaio não tivesse já dado pela chegada do intruso. O normal teria sido que as asas batessem e o fizessem voar para longe, bem antes de a visita chegar à árvore. Não aconteceu, e ele permanecia quieto, lá no alto. Era claro que havia qualquer coisa de errado no seu comportamento, que indiciava impossibilidade de se pôr ao fresco. 

Não era possível subir ao seu local de refúgio com o mínimo de segurança. Mesmo assim, a curiosidade aguçou o engenho e, com alguma dificuldade, subiram-se dois ou três troncos mais grossos, na sua direcção. Não se mexeu. Parecia convencido de que a sua hora havia chegado.

A meio da árvore, o encurtamento da distância permitia distinguir perfeitamente o que o mantinha ali, quietinho, chorando. A asa esquerda estava caída, talvez só segura pelas penas. Os olhos eram tristes, quase de súplica para lhe terminar o sofrimento.

Desci da árvore. A "nove mm" tinha ficado encostada à árvore, com o cartuxo no cano. Bastava apontar e puxar o gatilho. Nunca tinha atirado a um gaio, ensinado que fora a respeitar a sua beleza e o seu pouco préstimo para comer. Aquele não ia ser o primeiro, apesar de parecer que implorava isso.

Alguns dias depois, o regresso ao local: na árvore já não estava e, no chão, não havia qualquer vestígio de por ali ter caído. Talvez tenha conseguido sobreviver e voar de novo, quem sabe?

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