sexta-feira, 29 de maio de 2020

Festa

Tudo tinha sido tratado e organizado até ao mais pequeno pormenor.
Primeiro seriam os aperitivos, na adega, com os convidados a circularem por entre os barris, subindo até aos lagares e visitando a zona do engarrafamento. O almoço seria servido no jardim, com as mesas, bem espaçadas, e com oito lugares cada. Os elementos de cada mesa tinham sido cuidadosamente seleccionados, separando os casais oficiais e juntando os "arranjinhos" que se sabia existirem.
Os convidados começaram a chegar por volta das 11 horas.
Na adega encontravam, enquanto a visitavam, pequenos bancos cobertos de linho branco, onde estavam pratos da Vista Alegre com pevides e pinhões, previamente descascados, tremoços e passas de uva.
Três empregados garantiam o abastecimento do "champagne" bruto, fresquinho, que iam buscar à barrica cheia de gelo em cubos, estrategicamente colocada entre dois barris dos maiores.
Os aperitivos faziam sucesso, por fugirem ao trivial croquete, rissol ou pastelinho de bacalhau. Ouviam-se comentários sobre a excelência do local e da sua aptidão para o evento. Os que já conheciam o jardim, diziam que a surpresa seria ainda maior quando chegasse a hora do almoço.
Estava representada a mais alta burguesia existente no país nos finais da década de sessenta do século passado, que se fez transportar em Rolls Royce, Jaguar, Aston Martin, Pontiac e outros da mesma craveira.
Por certo que os convidados ainda não tinham tido tempo para se cumprimentarem entre si e eis que um pedido de ajuda surge. Era necessário socorrer uma senhora que se estava a sentir mal e levá-la até à quinta, para descansar um pouco. Tinha sido, por certo, a mistura dos tremoços, pevides e pinhões, por o estômago não estar habituado a essas iguarias. 
Pálida, trôpega, foi amparada até ao carro e nele entrou com muita dificuldade. A viagem foi breve, a saída do automóvel muito difícil e o percurso até um quarto disponível ainda mais, mesmo amparada por quatro braços. 
Ficou vago um lugar na mesa do almoço que lhe estava destinada e nem sequer conheceu o jardim. Ao final do dia regressou a Lisboa no mesmo lugar que tinha ocupado na viagem da adega, mas desta vez no seu carro, conduzida pelo motorista e acompanhada pelo marido.
Coisas de tremoços.

1 comentário:

Anónimo disse...

Vá lá! O transtorno da sra podia ter corrido bem pior. Porém, este texto está delicioso. Capaz de nos reportar ao ambiente dessa época e ao sabor dos pinhões e tremoços.