segunda-feira, 18 de maio de 2020

Mercearia e Fanqueiro

O balcão ia de uma ponta à outra da primeira sala, aquela onde estava a faca do bacalhau, a balança Avery, a medidora do azeite, os frascos com os rebuçados, quatro, uns em cima dos outros, com as bocas viradas para o interior, não fosse alguém distrair-se e, inadvertidamente, sacar um ou dois. Todo ele era de madeira e o descrito ficava à esquerda, até à balança. Depois, a zona de atendimento e os papéis, pardo e vegetal, os cartuchos, o rolo da guita e o espaço para cortar as roupas, com uma tesoura enorme e um metro de madeira, quadrado, com as marcações "centimetrais" bem escavadas na madeira e que estava sempre à mão, para medir ou assustar.
O merceeiro entrava para o balcão através de uma pequena porta, com um tampo que, mal acontecia a passagem, era de imediato fechado. Tinha sempre o mesmo passo, o mesmo tom de voz, o mesmo sorriso. Os anos já eram bastantes, o coração dava-lhe sustos amiúde e o volume da barriguita era escondido sob o casaco de cotim, que mantinha sempre fechado.
As tulhas do feijão, encarnado ou branco apatalado e, de vez em quando, o frade, mais raro e mais caro, estavam nas costas do homem e tinham um corredor, de lata, que servia para encher o cartucho com 250, 500 gramas ou, mais raramente, um quilo daqueles vegetais. O cartucho, do tamanho adequado ao peso, era dobrado em cima e a guita que o atava ficava presa na dobra do papel e permitia o transporte sem risco de cair.
Por debaixo das prateleiras que continham as mais variadas coisas - colheres de pau e das normais, garfos, facas, copos, tigelas, pratos - estavam a manteiga, a banha de porco, o café, o colorau, a pimenta, o sal e muitos outros produtos que, na "fotografia" já não se conseguem vislumbrar direito.

- Cem gramas de café, meia quarta de banha, dois decilitros de azeite, e a minha mãe manda dizer que é "pra assentar".
- Está bem, desta vez. Diz-lhe que o livro já não tem folha ...

O livro era mais alto do que largo, um rectângulo onde havia uma folha para cada um dos "caloteiros". As dificuldades eram muitas e nem sempre a jorna chegava no final da semana. A mercearia esperava...
Do lado da porta de entrada era a montra do fanqueiro: ganga, cotim, chita, algodão, lenços de assoar e de cabeça, bonés, barretes, linhas, botões, meias, soquetes, ganchos e um infindável  sortido de bugigangas impossível de descrever e descortinar, mas que o merceeiro sabia onde estavam quase sem olhar.
Havia ainda uma outra secção, provida com uma balança decimal, onde estavam os produtos mais pesados e os que não podiam "conviver" directamente com os da alimentação. A medidora do petróleo, enfiada no bidon e o álcool desnaturado faziam companhia ao foskamónio, que começava a dar os primeiros passos na agricultura, ao adubo tradicional e ao enxofre, este também numa tulha e com um corredor próprio. Pairava também por aí a batata de semente, Arran-Banner, Arran-Consul ou Impéria, ensacada em sacos de serapilheira, com 50 Kg cada, nada que assustasse qualquer homem da época, bem habituado a fazer força sem ir ao ginásio.
Era uma imensidão de coisas e uma infinidade de conversas sobre tudo e sobre nada, das quais sobressaíam as anedotas do viajante do Café Sertão, contadas nas visitas semanais e reproduzidas em todas as tertúlias da noite até que, na semana seguinte, surgissem novas.
 

2 comentários:

Anónimo disse...

Xiii! Que memória! Até me sentei na borda da tulha do milho ou da sêmea ou seria no banquinho que costumava estar junto da janela, não sei bem, para me deliciar com a redescoberta.

Anónimo disse...

Boa memória, excelente retrato de outros tempos. Havia também a barra de sabão azul, nos tempos de hoje tão falada e usada. E o amarelo para deixar as tábuas do soalho com bom aspecto. Quando com um cruzado se trazia alguma coisa. Era o comércio tradicional. E até levavam as coisas a casa… Era assim no meu bairro lisboeta, hoje tão diferente, com cheiros e sabores de outras paragens. É bom recordar.